Nestes últimos dias, por conta da chegada do Dia Internacional das Pessoas com Síndrome de Down no mundo, com a participação de jovens brasileiros, de ambos os sexos, que escreveram juntos o livro Mude seu falar que eu mudo meu ouvir, estivemos dando particular atenção à questão da auto-determinação, ou seja, o que isso significa na vida de nossos jovens com deficiência, se quisermos que sejam realmente donos de suas próprias vidas, de suas decisões existenciais mais importantes. Com certeza, a forma de viver a vida, o tipo de moradia que desejam ter, o companheiro, companheira ou parceiro de vida que escolham, tudo isso indica auto-determinação e o propósito de levarem vida independente.
Como pais que somos, e pais idosos, há mais de 50 anos envolvidos na luta pela aceitação plena de nossos filhos com deficiência na sociedade a que legitimamente pertencem, devemos nos perguntar quanto de coragem pessoal tivemos de ter para admitir que nossos filhos, criados com afeto e por sua vulnerabilidade com grande cuidado, seja – ele ou ela – capaz de tomar decisões tão relevantes sobre como querem conduzir a vida.
Sim, porque entre os numerosos sentimentos conflitantes que cultivamos durante toda a vida em nosso instinto de proteção em relação a nosso filho deficiente, não querendo que sofra, com certeza temos sido obstáculos importantes em sua caminhada para a chamada “vida independente na comunidade” como prega o Artigo 19 da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos de Pessoas com Deficiências.
Os tempos mudaram, as pessoas mais jovens com deficiência intelectual estão se unindo em grupos e fortalecendo a luta comum. Devemos ouvir o que nos têm a dizer. Hoje, encontramos entre os milhares de documentos que vamos acumulando pela vida, o depoimento de uma jovem neozelandesa Rosemary Scully, autodefensora do Donald Beasley Institute, Nova Zelândia.
Rosemary faz observações interessantes sobre o comportamento de nós, pais, outros familiares, cuidadores, enfim, o grupo de pessoas que cerca a pessoa com deficiência intelectual, procurando auxiliá-la. Vamos pensar com toda a sinceridade nas observações que Rosemary faz e refletir sobre elas:
“Algumas vezes, as pessoas que cuidam de nós, os apoiadores, e pais, não querem que sejamos independentes demais. Conheço uma determinada pessoa que ficava apreensiva em pensar que o filho poderia não precisar mais dela se se tornasse independente demais. Quais as chances que o filho tem de tomar decisões importantes por si mesmo?
Quando decidi morar em meu próprio ´flat´ os meus cuidadores não me deixaram escolher um companheiro. Não achavam que eu tinha condições de escolher a pessoa adequada para compartilhar um ´flat´comigo. A pessoa que minha equipe escolheu não era adequada. Não ficamos muito tempo juntas dentro do flat. Tudo teria sido muito mais agradável se o grupo de pessoas que me ajudava tivesse confiado em minha escolha.
“Muitos prestadores de cuidados, apoiadores, pais e, certamente, pessoas de dentro da comunidade, acreditam que pessoas que têm uma deficiência intelectual não conseguem pensar e nem pensam, e não sabem o que se passa a seu redor. Deixem que eu diga a vocês: pessoas com deficiência intelectual têm muito tempo para pensar, enquanto esperam, pacientemente, que as coisas aconteçam em suas vidas.
“Muitas vezes pessoas com deficiência intelectual não têm muitas oportunidades de por em prática a tomada de decisões feita por elas mesmas. Se as pessoas não pensarem que podemos tomar decisões, nunca ficaremos sabendo o que isso significa na verdade. Portanto, se a qualquer momento nos for dada a oportunidade de tomarmos uma decisão, ficará parecendo para todo mundo que não somos muito bons nisso. “
“Muitas pessoas pensam que é um risco demasiado permitir que façamos as coisas por nós mesmos. Pensam que iremos cometer erros. Vocês cometem erros – por que não podemos nós também?
“Se nos tornarmos pessoas que tomam decisões por nós mesmos, os outros teriam que nos incluir mais, e se acostumarem a nos ver em toda parte, diretamente envolvidos na comunidade. Algumas vezes penso que as pessoas não querem que sejamos incluídos porque podem perder um pouco o poder que têm sobre nós.
“Se nos tornarmos, de fato, pessoas capazes de tomar decisões aí a indústria de prestação de serviços poderia descobrir que não é assim tão necessária e isto, provavelmente, é um outro pensamento amedrontador que os prestadores de cuidados terão pela frente!
Então amigos. Em todo o mundo se fala, se pesquisa, se procura com toda razão ter políticas públicas que favoreçam o estabelecimento de residências comunitárias, algumas vezes chamadas residências inclusivas. O nome não importa, e sim que como temos tido e teremos muito mais depoimentos favoráveis a uma vida independente da família original, vamos ter de conviver com a ideia de que nós, pais e cuidadores, deveremos estar por perto de nossos filhos mais vulneráveis para uma possível intervenção, caso imprescindível, mas vamos ter de encontrar outras atividades, outros projetos de vida que nos estimulem a auto-estima e sejam úteis para a sociedade, permitindo, entretanto, que nossos filhos escolham e trilhem o seu próprio caminho.
Como se diz em espanhol: el camino no existe; el camino se hace al caminar.
(Traduzido do texto What´s all this stuff about self-determination?, do documento News from Inclusion-International por Maria Amélia Vampré Xavier*)
*Maria Amélia Vampré Xavier, Assessora da Diretoria de Assuntos Internacionais da FENAPAEs, Brasília, integrante da REBRATES (Rede Brasileira do Terceiro Setor), SP, Associação CARPE DIEM, SP, Associação SORRI BRASIL, SP, Membro honorário vitalício de INCLUSION INTERNATIONAL, a organização mundial de famílias com um filho com deficiência intelectual, sediada em Londres, que representa os direitos humanos de 60 milhões de pessoas com deficiência intelectual no mundo