Enquanto muitas pessoas no Brasil sonham com a chegada de um novo filho ou filha, existem mais de quatro mil crianças e adolescentes em abrigos em busca de um lar. E esta espera pode ser muito mais longa no caso daqueles que têm alguma deficiência, como a síndrome de Down. Para as famílias que escolheram receber estes meninos e meninas, a decisão é sinônimo de amor incondicional, felicidade e realização.
É o caso do casal Fabiana e Leandro Gadelha, de Brasília. A advogada conta que ela e o marido tinham o desejo de formar uma família a partir da adoção desde a adolescência. Após dois anos de casamento e do nascimento da primeira filha do casal, Valentina, continuaram “sonhando com a chegada do filho do coração”. Após um período de espera, a família recebeu em 2010 a oportunidade de adotar um menino de nove meses com síndrome de Down. Na época, moravam em Minas Gerais e levaram a pequena Valentina para buscar o novo irmão em um abrigo em Santa Catarina.
“Foi uma grande surpresa, um grande desafio, uma grande mudança e estamos todos muito felizes com seu olhar sereno, com seu sorriso faceiro e sua alegria contagiante. Evidente que dificuldades, inseguranças e mais desafios virão, mas a certeza prática de que o amor filial é idêntico entre filhos biológicos e adotivos nos impulsiona a viver dia após dia e a conquistar a felicidade real em nossas vidas”, conta Fabiana, que adotou posteriormente outro menino junto com o marido, o pequeno Arthur.
O mineiro Pedro Avelar também conta orgulhoso a experiência positiva de sua família. Eles receberam há 3 anos o menino Davi, hoje com 9, que nasceu com a síndrome de Down. “Davi é uma criança exemplar que a minha mãe, Márcia Domingues, adotou para a alegria de todos os familiares, amigos, vizinhos e conhecidos nossos. Ele é parte da nossa família e nos ensinou, além do amor, o sentido da vida sem perfeições”, contou Pedro, que enviou seu depoimento por meio da página do Movimento Down no Facebook.
Em Portugal, o casal homossexual Eduardo Beauté e Luís Borges, recebeu, em decisão inédita, a guarda definitiva do pequeno Bernardo. “Eu não posso achar que seja um exemplo porque sou um ser humano como outro qualquer. Eu e o Luís vamos tentar dar o melhor na educação do Bernardo”, ressalta Beauté.
Como adotar
A adoção é o procedimento legal e definitivo para um indivíduo ou casal assumir como filho ou filha uma criança ou adolescente nascido de outra pessoa. A lei brasileira determina que este processo deve ser realizado por meio do Juizado da Infância e Juventude. Os interessados devem procurar o juizado mais próximo de sua residência e fazer o Cadastro de Pretendentes para Adoção. Os documentos necessários variam entre os juizados, por isso é bom se informar com antecedência.
Para o cadastro, é preciso identificar o perfil da criança desejada. É possível optar por sexo, idade, tipo físico e condições de saúde. Após avaliação com profissionais de psicologia e serviço social, que verificam o estilo de vida, a renda financeira e estado emocional dos candidatos, o juiz dá seu parecer e aprova o Certificado de Habilitação para Adotar, válido por dois anos em todo o território nacional. Em caso de resposta negativa, é possível se adequar aos requisitos e tentar novamente.
Os procedimentos para a adoção de uma criança com síndrome de Down ou outra deficiência são exatamente os mesmos dos demais. O processo costuma ser mais rápido porque há uma procura menor por crianças com estas condições.
As informações de 2013 do Cadastro Nacional de Adoção mostram que, no Brasil, existem 26.694 pessoas aptas a adotar, enquanto 4.427 crianças e adolescentes esperam por um novo lar. As preferências de quem busca um filho ou filha ajudam a explicar o tamanho das duas filas. Dos interessados, 70% só aceitam crianças brancas, 80,7% exigem que elas tenham no máximo três anos (apenas 7% das crianças disponíveis têm essa idade) e 86% só aceitam adotar crianças ou adolescentes sozinhos quando boa parte dos jovens tem irmãos.
Casal ‘saltou’ na fila de adoção ao escolher criança com Síndrome de Down
O único medo que Cíntia tem é que o menino sofra bullying. Ela diz tratá-lo da mesma forma que seus filhos anteriores
Sul21 – Em 12 de janeiro de 2015, a enfermeira Cíntia Fleck voltou de férias pela manhã pronta para reassumir seu trabalho na UTI neonatal do Hospital Conceição. Ali, encontrou um menino nascido 15 dias antes, no final de dezembro, que recebia tratamento na instituição, mas deveria receber alta no mesmo dia. Colocado para a adoção pela mãe, moradora de Taquari (RS) que não tinha condições de criá-lo, estava prestes a ser levado por assistentes sociais da comarca da cidade.
“Eu não deixei. Comecei a chorar e disse que não”, conta Cíntia. Naquele momento, tendo visto o menino apenas por alguns momentos, ela já sabia que queria adotá-lo. “Quando eu cheguei na sala para trabalhar, me envolvi com ele. Foi estranho. Trabalho há muito tempo no hospital, mas aquele dia foi diferente. Antes de iniciar o plantão, eu me sentei ao lado dele e conversei com ele. Era bem magrinho”.
Inicialmente, Cíntia nem tinha percebido que o menino tinha Síndrome de Down. Foi informada pelas assistentes sociais, mas diz que isso não mudou nada. Ainda não eram nem 10h daquela manhã quando ela ligou para Luciano. “Ó amor, estou com nosso filho nos braços”, disse. “Como assim?”, questionou ele. “Só que ele tem um probleminha. Tem Síndrome de Down”, alertou ela. “Não dá nada”, retrucou o marido. Na sequência, a enfermeira já estava encaminhando a Luciano as fotos do futuro filho deles.
No mesmo dia, deram início ao trâmite. No dia seguinte, conseguiram uma audiência na Comarca de Taquari, cidade de origem da mãe biológica de Théo. Como mais ninguém que estava na frente do casal na lista do Cadastro Nacional de Adoção (CNA) tinha manifestado em seu perfil interesse em adotar uma criança com Down, saíram de lá com a guarda do menino.
Eram 15h30 quando Cíntia ligou para o marido dizendo: “Amor, a guarda é nossa”. “Dizem que ele sapateava no escritório”, relembra. “Foi ali que a ficha caiu”, conta Luciano. Ele já era pai.
O processo só teve essa velocidade porque Cíntia e Luciano pularam na frente de muita gente. O motivo para isso é justamente terem escolhido adotar uma criança com Síndrome de Down.
Como funciona o processo de adoção
Existe uma série de passos que os pretendentes devem cumprir para se habilitar à adoção. O primeiro deles é procurar o Juizado da Infância e Juventude da comarca onde moram e preencher um formulário manifestando a intenção e com informações pessoais. Em seguida, devem juntar documentos exigidos pelo ECA, participar de avaliação psicossocial, etapa na qual assistentes sociais e psicólogos determinarão se estão prontos para a adoção e quando poderão definir o perfil desejado, e acompanhar cursos de preparação com informações jurídicas, emocionais, etc. Ao fim desse processo, que pode levar até oito meses em Porto Alegre, o juiz decide se os pretendentes estão habilitados ou não para adoção.
“Tem que ser feita essa avaliação, tem que ter esse curso de preparação, porque é uma decisão muito importante e de muita responsabilidade. o Ministério Público tem que ter seu tempo para analisar e o magistrado o seu [tempo] para decidir. E, habilitada a pessoa, ela vai para o Cadastro Nacional de Adoção. Ou seja, entra na fila”, afirma Andréa Rezende Russo, juíza da Coordenadoria Estadual da Infância e Juventude do Estado.
Uma vez inscritos no CNA, os pretendentes devem aguardar por uma ligação dos responsáveis pelo cadastro. Eles são chamados, por ordem de inscrição, de acordo com o perfil escolhido. Quem definiu o interesse por adotar crianças saudáveis, sem irmãos, de 0 a 3 anos, o perfil mais desejado, poderá esperar anos até chegar a sua vez na fila. “É o perfil desejado. Se não é um filho biológico, que o adotivo chegue nas mesmas condições, que ele possa criar, passar os valores. Se compreende a intenção de adotar uma criança pequena. Porém, quando se faz a avaliação, o curso de preparação, se trabalha a possibilidade de ampliar esse perfil”, afirma Russo.
De acordo com o juiz Marcelo Mairon, 2ª Vara da Infância e da Juventude de Porto Alegre, no 1º semestre deste ano, 1 mil crianças e adolescentes estavam aptas para serem adotadas. Entre elas, 350 já tinham iniciado o processo de vinculação com pretendentes ou a Justiça já tinha encontrado no Cadastro Único um casal ou uma pessoa com o perfil aprovado. “Desses, a grande maioria são crianças de até 3 anos. Dos outros 650 que não estavam vinculados, mais de 90% tinham 10 anos de idade ou mais”, afirma o juiz, acrescentando ainda que menos de 2% dos habilitados no cadastro colocam no perfil desejado crianças e adolescentes de 10 anos ou mais. “A gente tem um descompasso entre o perfil da criança e adolescente existente e aquele desejado”, complementa.
Quem olha de fora, pode até achar desumano os pretendentes poderem escolher um perfil exato para seus futuros filhos, que, além da idade, inclua cor de pele, cabelo, se tem alguma doença crônica ou não, entre outras características. “Por que se pergunta o perfil? Porque nem todas as pessoas estão em condições e preparadas para receber um adolescente, por exemplo”, explica Andréa Russo.
Há ainda os casos que se configuram o pior dos mundos para a adoção: quando não há adaptação entre pais adotivos e seus novos filhos. “Nós temos casos de devolução, o que é algo muito triste, porque causa problemas psicológicos na criança e no adolescente devolvido. Por isso, é grande a responsabilidade que se tem no sentido de primeiro se verificar se a pessoa realmente tem condições de adotar uma criança ou adolescente e também do próprio acompanhamento desse estágio de convivência. Essas situações infelizmente acontecem e temos que evitar ao máximo com uma boa preparação destas pessoas”, pondera a juíza.
Para Angelita Rebelo de Camargo, assistente social da Corregedoria Geral de Justiça do RS, os casos de “devolução” decorrem justamente de uma falta de preparação adequada. “Na maioria dos casos, há uma falta de preparação dos adultos para aquela relação, por isso temos trabalhado na melhoria da capacitação”, afirma. “Nem sempre o desejo de ajudar vai ser suficiente para enfrentar as questões que vão aparecer no dia a dia”, afirma.
Mas o que leva os postulantes à adoção a desejarem a suspensão do processo? “São questões emocionais. É, daqui a pouco, tu idealizar demais uma relação que acaba não sendo exatamente como tu imaginou. Dependendo da capacidade emocional do sujeito, ele não suporta isso. Ele começa a criar uma barreira com aquela criança e adolescente, que nunca satisfaz as expectativas desse adulto”, explica.
Ela salienta que pessoas que desejam adotar precisam ter uma elevada tolerância a frustração, não apenas terem se sensibilizado com “alguma história triste”. “Às vezes se sensibilizou com aquela história, achou a história do adolescente muito triste e resolveu ajudar”.
Ansiedade e mudanças de planos
Apesar da velocidade na qual o processo deles andou, Luciano e Cíntia passaram por todas as etapas preparatórias. Ela já tinha dois filhos biológicos de um casamento anterior, Matheus, 22, e Luíza, 16. Ele, ainda não, mas desejava ser pai. Como Cíntia tinha passado por uma cirurgia de ligadura de trompas, o casal primeiro tentou reverter o processo e realizar fertilização in vitro. Mas, não obtiveram sucesso. Resolveram então adotar.
Era julho de 2014 quando procuram a Justiça para iniciar no processo de habilitação. Passaram por seis encontros com psicólogos e assistentes sociais e, posteriormente, por mais três encontros em que receberam videoaulas para preparação emocional e também sobre as exigência jurídicas. “Eu, na verdade, estava achando meio chato. Seis consultas com psicólogos? Quando a gente quer ter um filho engravida e deu”, diz Cíntia.
Concluído o processo, receberam a habilitação em outubro do mesmo ano. O perfil desejado inicialmente era bem diferente do que viriam a encontrar em Théo. “A gente gente optou por uma menina de até três anos, indiferente da cor”, conta Luciano. “Mas a gente não queria doenças crônicas, isso foi bem esclarecido”, complementa Cíntia. “Aí eu dei de cara com o nosso Théozinho”.
O que leva alguém a adotar uma criança com Síndrome de Down? A pergunta pode parecer cruel, mas é necessária diante do fato de que a maioria esmagadora dos pretendentes inscritos no Cadastro Nacional fazem questão de pontuar que procuram uma criança ou adolescente saudável. Esse era o caso, inclusive, de Cíntia e Luciano.
Sem hipocrisia, Cíntia diz que talvez nunca tivessem mudado o perfil desejado caso não tivesse tido contato com Théo no hospital. “Se alguém ligasse e dissesse: ‘ó, chegou o teu bebê, ele tem Síndrome de Down. Quer adotar?’ Talvez eu dissesse que não”, afirma.
Para ela, porém, o preconceito começa na família. “Ainda tem pais que se sentem tristes. A gente fez a escolha de ter um filho assim. Na verdade escolhi, entre aspas, porque eu me apaixonei por ele”, afirma.
O único medo que Cíntia ainda tem é que o menino possa sofrer bullying. Do contrário, diz tratá-lo da mesma forma que seus filhos anteriores. “A gente oferece tudo para o Théo. Todas as oportunidades que a gente pode, a gente oferece, porque daí o aprender é dele, não porque ele não teve contato”.
O amor à primeira vista levou Cíntia a superar os temores que poderia ter e também os “alertas” que recebeu de colegas do hospital. “No momento em que eu conheci o Théo, o médico de plantão me puxou e me alertou: ‘Tu sabe o que é uma Síndrome de Down? Eu não recomendaria ninguém a adotar’. Ele disse. Muito sério, olhando no meu olho. Aquilo me irritou muito”.
Também foi chamada de “louca” e questionada sobre o que o menino poderia lhe dar em troca: “Eu disse que o que eu espero ele vai poder me dar: muito amor e carinho”, afirma.
E assim foi. Com uma alegria que contagia a todos que o conhecem, Théo virou o xodó da família, se dando muito bem com os irmãos. “Ele é muito carinhoso, sempre quer abraçar e beijar”, diz Cíntia. “A minha filha de 16 anos uma vez disse para mim: ‘eu queria ter um filho com Síndrome de Down, mãe’. Aquilo me assustou no início, mas ao mesmo tempo eu pensei que tenho um filho assim e é tão bom”.
Deixe o amor te surpreender
O fato de terem aberto o coração para uma adoção fora do comum fez de Luciano e Cíntia, e do pequeno Théo, uma das estrelas da campanha “Deixe o Amor te Surpreender”, promovida pelo Tribunal de Justiça do RS.
Para a juíza Andréa Russo, o foco da campanha e do trabalho do juizado é justamente “oportunizar uma reflexão” para que os pretendentes a adoção possam flexibilizar o perfil de crianças e adolescentes procurados. Além disso, ela afirma que as assistentes sociais do TJ em Porto Alegre estão iniciando um projeto piloto para, naqueles casos em que não há combinação perfeita entre os moradores de abrigos e inscritos no CNA, se possa buscar pretendentes com perfil aproximado. “Às vezes, o pretendente quer uma criança de até cinco anos. Então, quem sabe com seis?”.
A assistente social Angelita explica que, a partir do momento que ocorre essa flexibilização, inicia-se então o processo de busca do consentimento dos menores. “No momento em que alguém se dispõe a flexibilizar o seu perfil e conhecê-lo, a gente vai pegar esse interesse do adulto e buscar o consentimento do adolescente e do pré-adolescente. Falando que encontramos uma pessoa, que ela está muito interessada em conhecê-lo, e propõe o encontro”, explica.
Em 2015, o Juizado da Infância e da Juventude do RS emitiu 889 sentenças de adoção. Até o final do mês de outubro deste ano, já tinham sido emitidas 730 sentença. Segundo dados da última quarta-feira (16), 598 crianças aguardavam adoção no RS, cerca de 12% das 4.860 habilitadas em todo o Brasil.