*João Cavalcanti é cantor e compositor, pai de Tom, 5 anos, e de Luna, 3 anos e com síndrome de Down.
A maternidade é um milagre. Conexão irrevogável, inexorável e inoxidável. Privilégio reservado às mães, não por imposição semântica ou primazia genética (tanto que pode abarcar, com igual ou maior profundidade, mães adotivas, inclusive homens). Mãe é gênese.
Pai, não. Pai é outro lance.
Quando eu era (mais) jovem, dizia por aí que queria ser pai. Que tinha traquejo para lidar com crianças, que tinha aguçado interesse pelo universo lúdico e que, por ter dois irmãos e uma irmã bem mais novos, já tinha, até, uma espécie de estágio no meu currículo da paternidade. Dizia por dizer – e porque a mim soava maduro dizê-lo.
Eu era, no mínimo, incauto. Anos mais tarde, com o nascimento do Tom (em pleno Dia dos Pais!), descobriria que ser pai é perceber-se inapto, imaturo e insuficiente. Se para as mães a gestação é o interruptor com que se acessa a corrente dos instintos para iluminar o mundo com o holofote de um amor sem paralelos, para nós, pais, só resta a construção. A construção diária de uma relação que não dá quaisquer garantias. Nem de existir.
Resolvi construir. Procurar no meu filho os espaços que cabia a mim ocupar. E tratei de tentar ocupá-los com carinho, limite, intimidade, tempo. Ora, se não cumpro os pré-requisitos de mãe, mesmo sabendo-me inapto, imaturo e insuficiente, haveria de provar-me um pai imprescindível. Desde sempre. Até porque, ensina-me a vida, qualquer tempo perdido é irrecuperável. As pequenas paredes que consegui erguer na construção do amor-incógnito pareciam mostrar para mim que, afinal, ser pai já não era um mistério.
Aí nasceu a Luna. E Luna, como que debochando do meu autoproclamado know-how, veio ligeiramente diferente do que eu supunha em meus preconceituosos e limitadíssimos anseios. Um cromossomo a mais e uma interrogação no firmamento. Medo, muito medo de tudo e aquela sensação de começar a construir novamente – às cegas e sem conhecer o terreno.
Que terreno! Luna é fértil, sólida e única. Me esfrega na cara, diariamente, da forma mais doce que há, o quanto é inútil projetar-se nos filhos. Grita, sem saber, “ei, egoísta, não é pra você que eu existo mas, sim, o contrário!”. Usa seu olhar hipnotizante para tentar me manipular – mas é meu dever educá-la, portanto resisto ao transe. Quase sempre.
Hoje sou um pai resignado em minha ignorância. Ávido, contudo, por construir diariamente cada degrauzinho de amor e sabedoria. Sei que tenho um lugar só meu e dos meus filhos e, por isso mesmo, não invejo o caráter sagrado da relação deles com a mãe. Não propago nem projeto quase nada: é difícil, mas estou tentando largar minhas pequenas-verdades-de-manual. Não tenho tempo a perder empunhando arquétipos e bravateando o que idealizo de mim mesmo. Só quero ter energia para errar e acertar todos os dias até, quem sabe, ser, querer ser, merecer ser pai.
Que é outro lance.
Depoimento originalmente publicado em texto da Revista O Globo, em 03/08/2014. Gentilmente cedido por João Cavalcanti.