Por Luciana Bettiol, autora do blog “Eu chego lá” e mãe do Bruno
Preconceito…
Acho que nunca escrevi sobre isso no blog. Até porque tento viver como se o preconceito não existisse, como estratégia de resistência a ele.
Só que hoje me coloquei na pele dessa mãe, e não consegui guardar para mim a indignação com a resposta que ela recebeu da escola onde pensava em matricular sua filha, que tem síndrome de Down:
“Sra…, boa tarde!
Nosso colégio utiliza o Sistema Anglo de Ensino, priorizando conteúdos e provas a partir dos 6 anos de idade (1º ano do EFI).
Não barramos nenhum aluno, porém, pelas experiências passadas, embora não saiba a que tipo de inclusão você se refere, os pais que já chegaram a matricular seus filhos conosco e que os mesmos portavam dificuldades motoras e/ou limitações neurológicas acabaram optando por colégios com linhas pedagógicas mais flexíveis que as nossas.
Principalmente quando pequenos é necessário que, em primeiro lugar, os alunos se sintam bem adaptados e encorajados a participar da vida escolar.
Se a escola é exigente demais, nestes casos pode causar efeitos não desejáveis aos aprendizes.
Nossa linha, por vezes, é um fator que acaba por não auxiliar alunos que necessitem de inclusão.
É claro que cada caso é único, mas neste momento é o que posso lhe responder com sinceridade e responsabilidade”
Quem vê de fora, num primeiro momento pode até sentir-se “tentado” a concordar com esse “conselho” de procurar “linhas pedagógicas mais flexíveis”… Ora, é para o próprio bem da menina – completariam!
Afinal, é claro que “é necessário que em primeiro lugar os alunos se sintam bem adaptados e encorajados a participar da vida escolar”. Quanto a isso não há dúvidas. MAS: como alcançarão esta adaptação e esta coragem longe dali?!
Se a escola é “exigente demais”, será que ela não está sendo “exigente demais”?!?!?
E ainda admite “não auxiliar alunos que necessitam de inclusão”. Por fim, tem coragem de falar em “responsabilidade”…!
Eu gostaria muito, mesmo, de continuar acreditando que o preconceito está alicerçado no desconhecimento, na desinformação. Mas exemplos como este diagnosticam sua relação íntima com o desinteresse, a má vontade e o descaso. Qualquer escola (que se preze) deveria ter vergonha de não cumprir a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, de 2008, atualmente em vigor com valor de norma constitucional, que determina que todos os alunos com deficiência têm direito a estudar em escola regular.
Sim, eu sei que, por ser particular, essa escola sente-se no direito de “escolher” seus alunos. Esse é um erro bem grosseiro: confundir interesses comerciais com os educacionais.
O mais curioso é que, quando comecei a rascunhar esse post na minha cabeça, entre umas horas de estrada e umas noites mal dormidas, pensava em descrever a experiência de outra mãe. Esta, ao ligar para outra escola pedindo uma visita, encontrou certa dificuldade e tentou reforçar a necessidade de diálogo direto com a coordenadora pelo fato de seu filho ter síndrome de Down. Ela precisou resistir ao boçal argumento da secretária: “Olha, é melhor você esperar mais um pouco, porque aqui nós não teremos uma auxiliar só para ele, apenas a auxiliar da classe…”. Ai, socorro…!
Felizmente, essa mãe conseguiu ignorar a tentativa da moça de livrar-se dela, explicou breve, mas incisivamente que seu filho não precisava de uma auxiliar, e depois de agendar a tal visita, percebeu que a coordenação da escola e sua filosofia não correspondiam à atitude superficial daquela infeliz secretária – pelo menos ao que parece.
Eu estava animada com este exemplo, porque demonstra que não podemos deixar que o preconceito limite as chances que desejamos oferecer aos nossos filhos, e que suportá-lo muitas vezes vai doer, mas tem que fazer parte do dia a dia, porque combatê-lo é nossa obrigação… Afinal, somos todos seres humanos, egocêntricos e invariavelmente preconceituosos, em diversos assuntos e aspectos, desde políticos até raciais, religiosos e outros mais. É intrínseco ao ser humano procurar seu semelhante, juntar-se aos parecidos, aproximar-se de seus afins. Mas isso não pode significar o desprezo, a indiferença e o descaso para com o diferente.
Se qualquer um de nós quer um mundo mais justo, humano e sustentável em todas as esferas, tem que começar olhando para si mesmo e buscado livrar-se dos seus preconceitos, das suas opiniões pré-estabelecidas e desprovidas de fundamentos reais. Interessar-se pelo outro, exercitar a empatia (colocar-se no lugar do próximo), e permitir dividir o seu espaço e o seu tempo com alguém diferente de você, pode parecer algo simples, mas isso é o início da desintoxicação do preconceito, hoje enraizado num mundo severamente competitivo e racional.
Quando todos nós formos capazes de levar essa tarefa a sério, essa escola vai enviar outro e-mail para a mãe da Laura, convidando a pequena para estudar lá. Nesse dia, ela desejará, de fato, cumprir o papel a que se propõe: educar, aprender, e existir, de verdade, como escola.
Texto originalmente publicado no blog “Eu chego lá”.
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