“Não deixe de ver a exposição de Judith Scott no Museu do Brooklyn! E escreve um texto pra gente!”, encomendou uma grande amiga. E uma ida à mostra desta artista americana, com síndrome de Down, entrou na minha lista de programas culturais a serem feitos em Nova Iorque. Como sabia que iria me emocionar muito por tudo o que já tinha lido sobre a vida de Judith, preferi fazer este passeio sozinha, acompanhada somente da minha constante angústia de não estar estimulando o meu filho, Francisco, o bastante e, ao mesmo tempo, da avassaladora certeza de que o Xico já teve, em 14 anos de vida, mais chances de ser visto e ouvido do que gerações e gerações de pessoas com deficiência intelectual, como é o caso desta americana, nascida nos anos 40, nos Estados Unidos.
Trata-se, portanto, de um paradoxo. Assim como foi a trajetória de Judith. O fato de o nome da sua primeira retrospectiva num museu, em cartaz até 29 de março, se chamar Bound and Abound (Enlaçado e Abundante – numa tradução livre), nos deixa à vontade para viver a intensidade dos extremos.
A vida de Judith Scott, que morreu aos 61 anos, em 2005, é emblemática da transformação do olhar da sociedade, não só a americana, mas talvez ocidental, sobre pessoas com deficiência. Afinal de contas, quando as gêmeas Judith e Joyce nasceram, em 1943, em Ohio, Colorado, a Segunda Guerra movimentava o tabuleiro do poder e, consequentemente, a maneira de pensar da humanidade.
E, assim, a família de Judith foi aconselhada por médicos e religiosos a deixar a menina, com sete anos, numa instituição para pessoas consideradas severamente deficientes e, portanto, ineducáveis. E lá ela viveu por 35 anos, abandonada e sozinha. Tão pouco ouvida que ninguém notou que ela tinha ficado surda, quando criança, por conta de uma doença infantil. Assim, assumiu-se que ela era “profundamente retardada” porque não falava. E, sem estímulo algum, muda ficou.
Durante o período em que Judith viveu isolada, o mundo passou por transformaçōes gigantescas. Os direitos humanos, a igualdade racial, o feminismo, a luta pelos direitos civis de homossexuais, a definição de cidadania. Sem dúvida, cada arena desta respingou positivamente na fatia da sociedade, na minha opinião, mais desprotegida por ainda ter mais porta-vozes do que voz: a população com deficiência intelectual.
Somente quando Joyce a resgata, décadas depois, e contra a vontade da mãe, da instituição e a leva para morar com sua família, em 1986, que Judith passa a voltar a ser parte de uma família. No ano seguinte, ela conhece o grupo de artistas e terapeutas que formam o Creative Growth, grupo californiano que trabalha com pessoas com deficiência intelectual através da arte, mas sem pensar nelas como pacientes, mas como criaturas que produzem arte e ponto. E assim o que nunca foi dito, compartilhado, reconhecido, ganha a valiosíssima chance de se transformar nas peças expostas agora no Museu do Brooklyn.
Judith passou 18 anos em contato com o Creative Growth Art Center, em Oakland, na Califórnia, a primeira organização, no mundo, a oferecer um espaço de criação para pessoas com deficiência. Lá, durante os dois primeiros anos, Judith não mostrou muito entusiasmo por nada, tampouco grandes habilidades. Recortou, rabiscou, mas nada que parecesse lhe dar uma satisfação louca. Até que, durante uma aula dada por uma artista que trabalhava com fibras, ela começou espontaneamente a criar esculturas únicas pelas quais se tornou famosa.
Aos poucos, ela começou a enrolar objetos, transformando suas silhuetas, dando-lhes novas formas, com tecidos, papel, vários tipos de material, em tramas elaboradas, com cores e texturas lindamente trabalhadas. Segundo informação da própria exposição, Judith mostrava que a peça estava pronta, empurrando-a para um canto, resoluta, e jamais dava muita bola para o trabalho encerrado, no máximo, um tapinha fugaz como quem cumprimenta casualmente um amigo.
Hoje Judith tem muitas peças espalhadas em coleções particulares e até num museu em Londres, além do próprio acervo do Creative Growth. Uma cadeira e um carrinho de supermercado, abraçados pela arte de Judith são os mais badalados.
Eu gostei especialmente do que vi como um mapa do Brasil e também o que reconheci como um coração, não, o símbolo fofinho, mas o que bate, bate e para.
E o meu coração batia angustiado o tempo todo. Para criar o clima completo de tristeza, eu, que detesto dias nublados, passei três semanas em Manhattan e, no único dia que nevou, me vejo sozinha, com frio, pegando metrô e indo, à flor da pele, para a exposição no Brooklyn. Rondei o belo museu, sentei pra tomar um café e finalmente subi ao quarto andar para encontrar Judith. Foi botar o pé no salão pra abrir um berreiro. Chorei sem parar, emocionada e feliz, nas minhas lágrimas, por poder testemunhar a presença de uma pessoa que foi invisível praticamente a vida toda e que teve a chance de viver uma espetacular reviravolta em vida. Chorei por imaginar o que ela viveu, o abandono, e também de saudades do Francisco, que há um mês estava longe de mim, com o pai.
Mas, mesmo fungando e enxugando as lágrimas, evitei cruzar o olhar com qualquer um para que eu não estimulasse a possibilidade de alguém vir me consolar, perguntar se eu estava bem. Eu estava ótima. Eu estava intensamente emocionada pelo abraço que estava recebendo de Judith Scott, da mesma forma que fez com cada um dos objetos que ela tão generosamente nos presenteou.
Lais Mendes Pimentel, roteirista e jornalista.
Judith Scott nasceu em 1943, em Ohio, nos Estados Unidos, com síndrome de Down. Morou na casa dos pais com a irmã gêmea Joyce até os 7 anos, quando foi internada em uma instituição descrita como “saída de um livro de Charles Dickens”. Lá ela viveu isolada, sem educação nem estímulos, já que se considerava que tinha um “comprometimento muito severo”. Trinta anos depois a irmã, Joyce, levou Judith para morar com ela. Só então se descobriu que ela era surda. Judith começou a frequentar o Creative Growth, um centro artístico para pessoas com deficiência, em Oakland, na Califórnia. A princípio, não demonstrou muito interesse, mas quando foi apresentada a fios e materiais têxteis, começou a produzir seus “casulos”, envolvendo toda sorte de objetos de diferentes tamanhos, e não parou mais. Chegava a ficar com os dedos sangrando de tanto enrolar os fios. Judith Scott criou mais de 200 esculturas nos 18 anos em que esteve no Creative Growth Center, até sua morte, em 2005. Hoje sua obra é reconhecida internacionalmente e faz parte de acervos de museus e coleções particulares. Este abaixo foi seu último trabalho.
Para saber mais (em inglês)
Website
http://judithandjoycescott.com/
Vídeo “Que tienes debajo del sombrero”, com subtítulos em espanhol
Vídeo sobre o Creative Growth Center, em Oakland, Califórnia, onde Judith fazia suas criações
http://www.kqed.org/arts/programs/spark/profile.jsp?essid=4308
Fotos
Judith e Joyce
http://judithandjoycescott.com/family.shtml
Processo artístico
http://judithandjoycescott.com/process.shtml
Esculturas
http://judithandjoycescott.com/artwork.shtml
Rachel Adams, escritora que tem um filho com síndrome de Down, escreve sobre a exposição
http://avidly.lareviewofbooks.org/2014/12/05/bound-and-unbounded/
Site da exposição Bound and Unbounded, no Museu do Brooklyn
http://www.brooklynmuseum.org/exhibitions/judith_scott/
Perguntas e respostas sobre a exposição
http://www.brooklynmuseum.org/ask/forum/post.php?forum=34
Edição – Patricia Almeida