A Mulher que não deveria existir

Gisela Groβer

Quando criança, Gisela Groβer escapou das engrenagens mortíferas dos nazistas. Hoje, ela faz parte do pequeno grupo de idosos na Alemanha, que têm síndrome de Down.

“Lá embaixo é escuro, eu não quero entrar lá“: Gisela Großer Foto: Heinz Heiss

Ela chegaria, no máximo, aos 25. Com um pouco de sorte, vitaminas e um tratamento com injeções, talvez até os 30 anos. Esta foi a previsão dos médicos. Ela não mereceria viver, sentenciaram os nazistas que queriam livrar o povo de pessoas como ela. Gisela Groβer não sabe de nada disso. A pequena mulher de grande teimosia só se interessa pelas figuras dos livros de história e dos jornais. Ela desconhece as letras. Ela não se aborrece com a política, mas sim com os portões de jardim que são esquecidos abertos, fechando-os um a um quando passa por eles. Então ela comemora como se tivesse feito uma travessura. Quando ela ri, o seu rosto parece um sol – com vários raios em torno dos enrugados olhos azuis.

Quando Gisela Groβer nasceu, em 20 de fevereiro de 1942, em Riedlingen, na Alta Bavária, com olhos estranhamente oblíquos, uma cardiopatia e um cromossomo a mais, a eutanásia infantil já havia começado no Terceiro Reich. “Idiotia Mongolóide” é o que constava no diagnóstico e na sentença de morte. Pois, naquela época, todo o médico, toda parteira, toda maternidade era obrigada a comunicar o nascimento de crianças com deficiência. Contudo, no caso do bebê de Riedlingen, parece que todos, milagrosamente, fecharam os olhos – e esta foi a sua salvação. A saudável senhora de 72 anos faz parte do pequeno grupo de sobreviventes idosos na Alemanha com síndrome de Down.
A mulher que não deveria existir brada tanto quanto suas cordas vocais permitem. “Me deixa em paz”, grita ela para o irmão Ulrich, “me deixa, idiota.” É domingo, um pouco antes das dez, e Gisela Groβer está prestes a chegar atrasada para a missa. “Mas agora vamos, vamos”, alerta o irmão e faz um movimento batendo com as palmas das mãos. É um jogo que ambos conhecem e que está para a sua rotina, assim como o pãozinho quente está para o café da manhã. Sem alguém que ficasse em cima, Gisela esqueceria o tempo – embora tenha ajustado com precisão os seus quatro despertadores. Sem vontade, ela permite que lhe coloquem o casaco de inverno sobre os ombros, fica irritada por ter que levar o andador de rodinhas. “Sempre esta porcaria de carrinho”, resmunga ela e marcha em direção ao badalar dos sinos em meio a lama formada pela neve derretida.

Em Riedlingen, Gisela Groβer é tão conhecida quanto o padre. Na padaria, ela ganha guloseimas, no cemitério, a seu modo, ela fez amizade com os vizinhos – ela distribui água benta e olhares curiosos. Há exatos quatro anos, ela retornou à parte do sobrado, onde vive com o seu irmão Ulrich. Ele ousou o que ninguém achava que ele fosse capaz de fazer: primeiramente, cuidar da mãe inválida até a sua morte, e depois, tirar a sua irmã mais velha com deficiência intelectual do asilo. “Até hoje, eu nunca me arrependi”, diz Ulrich Groβer, calças de couro pretas, pulôver listrado e sempre disposto a fazer piadas. Ele entregou o seu apartamento em Berlim-Kreuzberg, parou de lamentar a falência da empresa de consultoria financeira na qual trabalhava, e voltou para a sua terra natal. Alta Suábia católica ao invés do descolado bairro berlinense, pensão, ao invés de auxílio desemprego – para o homem de 58 anos, uma decisão que trouxe benefício a todos, garante ele.

Metade da igreja se volta para Gisela Groβer, quando, no meio do hino, ela irrompe missa adentro. Ela se dirige à possível vaga de estacionamento para o seu andador, uma coluna, próxima ao altar, e pega a sua bolsa tiracolo rosa. Sobre a bolsa, a estampa da Hello Kitty, dentro dela, o livro de orações. As pessoas abrem espaço para a retardatária. Ir sozinha à igreja é o ritual de domingo e um exercício de independência. A aposentada é baixa e sempre encontra alguém que abra a pesada porta da igreja para ela passar. Ela não chega a medir nem um metro e cinquenta e, sentada no banco da igreja, mal alcança o chão com as suas botas.

Para Gisela Groβer, muitas coisas representam um eterno exercício de paciência. Ela testa a paciência dos paroquianos, balbucia algumas palavras para ela mesma, conta o dinheiro que coloca no cesto de doações. “Me deixa”, diz ela afastando aos gritos a sua vizinha que tenta lhe estender a mão na hora dos cumprimentos. Ela só estende a mão ao jovem padre, olhando-o nos olhos com cara de séria.

O seu jeito direto de ser é ao mesmo tempo chocante e digno de carinho. Gisela Groβer diz o que pensa. Ela expressa a sua rejeição e a sua simpatia, se permite tomar pessoas totalmente estranhas nos braços, lhes fazendo elogios. É a campeã da paquera, frágil, suave, uma penugem branca sobre a cabeça, como a espuma das ondas. No mais escrachado dialeto suábio, ela formula frases quase incompreensíveis, engole metade dos sons e, vez ou outra, gargalha de alegria.

O inverno cobriu o cemitério de neve. “Oi mamãe”, cumprimenta Gisela Groβer e vai levando o seu andador com a vela até a sepultura. Ela se senta no andador, como se fosse uma cadeira. “Tudo de bom para o seu aniversário e que você esteja no céu junto de Deus.” Desde a morte de sua mãe Thilde, ela logo passou a vir diariamente até aqui para estas conversas, colocando desta forma a sua tristeza para fora, horas a fio e em círculos intermináveis. Após dois ou três anos, a necessidade de falar diminuiu.

“Lá em baixo é escuro”, suspira Gisela Großer, “eu não quero entrar lá, lá eu vou apodrecer.” De repente ela tem pressa de se despedir, afasta o gorro vermelho nervosamente dos olhos. Ela está ficando com frio e em casa tem assado com repolho roxo e bolinhos.

Ninguém sabe dizer ao certo como Gisela Groβer escapou dos delírios de aniquilação do Terceiro Reich. O médico no Hospital de Riedlingen a teria protegido, acredita o seu irmão. “A mãe tem condições de cuidar sozinha da filha”, teria dito ele após o parto. A família morava em Heiligkreuztal, na área de um convento afastado, depois de Riedlingen, onde todo mundo conhecia todo mundo e forasteiros eram raros. No andar superior da mansão em frente à igreja, a família Groβer tinha paz. O pai, um procurador bem posto, a mãe uma católica devotada que havia trazido seis filhos ao mundo.

O medo do pior sempre esteve presente, lembra a irmã de Gisela, Mechthild Zimmermann. A mãe chegou a ter que presenciar a forma como a bebê com deficiência de uma boa amiga lhe foi tirado – foi dito que a menina seria melhor cuidada em um abrigo. Pouco tempo depois, chegou uma carta dizendo que, infelizmente, a criança havia falecido.

 

O medo do pior esteve sempre presente.

A trilha para a morte era cuidadosamente planejada. Três peritos da Comissão do Reich decidiam com base em um formulário de notificação, quem seria encaminhado para um dos departamentos especializados infantis, vindo para Stuttgart ou para Eichberg. Uma overdose de sonífero, misturada à comida ou injetada, matava a criança. Elas morriam por paralisia respiratória, falência circulatória ou pneumonia. Estima-se em cerca de no mínimo 5000 o número de vítimas.
Gisela Groβer é praticamente engolida pelo estofamento da poltrona da sala. À tarde, eles selecionam as fotos – ela coloca uma ao lado da outra, alinhando os cantos com precisão. “A gente tem que por todas em um saquinho”, insiste ela e segura algumas de cabeça pra baixo. A sua visão piorou, as costas curvadas doem e, às vezes, a aposentada não consegue controlar a evacuação. Os médicos corrigiram a expectativa de vida de pessoas com síndrome de down para 60 anos, Gisela Groβer está bem acima da média. Em função das doenças relacionadas ao problema genético, antigamente ninguém esperaria que ela vivesse tanto.

Seu irmão Uli tem que intervir cada vez com maior frequência, seu cuidador, crítico e amigo, que ela beija na bochecha, para depois lhe dar um tapinha no bumbum. Ela sabe como aborrecê-lo. “Ele sempre veste a minha roupa de baixo”, denuncia, amenizando depois com um sorriso: “Em casa eu estou sempre feliz.”

Tradução: Christine Ilge di Pietro

Fonte: http://www.badische-zeitung.de/panorama/die-frau-die-es-nicht-geben-duerfte

Obs: Esta matéria foi escrita antes do falecimento de Gisele em dezembro de 2014.