Falar de inclusão com Gecy Klauck, ex-presidente da Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down, é entrar em uma pauta dúbia, de indignação e conquistas. Sua gestão comemorou junto ao Ministério da Educação (MEC) a matrícula de 76% das pessoas com deficiência no ensino regular. “Um salto na busca de uma sociedade igualitária, sem segregação. Só que ainda falta tanto…”, pondera Gecy. Além do cargo de presidente da Federação, a gaúcha ainda acumula a função de terapeuta holística, esposa do Remi e mãe de Moara (30), Marçal (27) e Maíra (18). E foi justamente no nascimento da temporã com síndrome de Down que conheceu o “universo paralelo de alegrias”. Por trás de seu espírito contestador, o sorriso largo também é presença constante, por vezes até envolto em lágrimas que interromperam algumas respostas. Conheça a luta e o retrato dessa mulher de atitude – mas que também é tão doce quanto os chocolates que nos presenteou diretamente do Rio Grande do Sul.
Conte um pouco de sua trajetória até tornar-se presidente da Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down?
Costumo dizer que eu sempre fui uma rebelde sem causa – até que Deus resolveu me dar um motivo real para lutar, com o nascimento da Maíra em 1995. A partir daí, quatro meses depois, eu já estava envolvida no movimento de Porto Alegre. Mas meu sonho sempre foi participar de algo na minha cidade, em Novo Hamburgo, mas lá não existia nada. Dois anos depois, um grupo de pais resolveu se unir em São Leopoldo e eu fui – era mais perto de casa, mas ainda não era na minha cidade. Mas esse grupo acabou não tendo continuidade, e foi então que montamos um movimento em Novo Hamburgo. Atuei como relações públicas, nos conselhos, fui presidente por duas gestões, saí da cadeira e depois voltei novamente, sempre como voluntária. Muitas vezes, inclusive, tirando dinheiro do próprio bolso, pois muitas viagens são necessárias. Tu deixas de ganhar e ainda investe na causa. Isso é amor à missão. Por esse envolvimento, a Federação conheceu meu trabalho. Comecei lá como secretária em 2006, participei de várias gestões, até ser eleita presidente em dezembro de 2012. Tive excelentes mestres que me precederam na Federação. Todas realizaram um trabalho muito bom, lutando pelo direito de ir e vir na sociedade, pelo direito à cidadania… Um baita desafio!
Por que um envolvimento tão precoce, quando sua filha tinha apenas quatro meses?
Eu não consigo ficar quieta. Quando a Maíra nasceu, eu tentava perceber a diferença dela e não via. Queria encontrar outros pais e mães. Onde estavam essas famílias com filhos com síndrome de Down? Essa era a pergunta que eu sempre fazia, já que não via ninguém. Será que só eu tenho uma filha com síndrome de Down? Por falta de referências, minha reação natural foi tratá-la como mais um filho dentro da casa. Queríamos que ela vivesse todas as etapas da mesma forma que seus irmãos, frequentando os mesmos espaços. Saí do hospital e fui atrás de muita literatura, queria mais informações. Eu tinha muitas perguntas. Descobri, no entanto, que nem as políticas públicas estariam do meu lado para que a Maíra crescesse como meus outros filhos. Isso me indignou. Anos mais tarde, já envolvida no movimento, senti na pele tudo aquilo que li logo depois do nascimento da Maíra. A duras penas, e depois de muitas matrículas negadas, conseguimos colocar a Maíra no ensino fundamental. E ela só conseguiu em um município vizinho, a 15km de distância de onde moramos.
É por isso que a sua gestão na Federação esteve tão direcionada à educação?
A Federação também nasceu em 1995, mesmo ano em que a minha Maíra nasceu. Nessa época, o país só tinha iniciativas isoladas. Poucos pais enxergavam que não existia diferença em seus filhos com síndrome de Down, que tudo era uma questão de estimulação e oportunidade. Basicamente, quando nascia uma criança com deficiência, automaticamente passava a pertencer a uma instituição especial. O resto da sociedade se eximia de pensar nessa pessoa, já que ela estava segregada. É como se estivessem fazendo um favor. O deficiente vai pra cá, o bonitinho vai pra lá. Nascia e ia para a instituição. Foi aí que a Federação começou a questionar essa realidade – isso antes da minha gestão. Quais os resultados que essas instituições especializadas estavam gerando? Quantas das pessoas que saíram destas instituições têm ensino fundamental? Quantas têm ensino médio? Quantas fizeram universidade? Conhecendo os índices das crianças com deficiência intelectual no Brasil, vimos que existem 30 formados. E todos esses 30 universitários não vieram de instituições especiais, saíram da escola regular. Por que? Existem 30 adultos com síndrome de Down que concluíram a universidade, 30 brasileiros que não passaram por essa segregação. Se é saindo da escola regular que se chega a uma universidade, aí temos uma grande incógnita: por que insistir em um modelo que não traz resultados? Outra lacuna destas instituições é quanto ao mercado de trabalho: se meu filho fica segregado em um grupo de iguais nestas instituições, como aos 20 anos ele vai estar preparado para enfrentar um trabalho competitivo de diferentes? Como ele vai se virar? Não adianta eu poupá-lo do sofrimento. Escola ensina pra vida, e uma instituição especial afasta da vida.
Quais os principais resultados desta luta?
Demos um salto quântico do nada para o tudo. Os números do Ministério da Educação (MEC) hoje mostram que a inclusão da pessoa com deficiência nas matrículas da rede regular de ensino é de 76%. Mas isso efetivamente só aconteceu de 2013 pra cá, quando o próprio MEC interviu assumindo a causa da inclusão sem titubear. Esse número incomoda muita gente, porque a inclusão desacomodou todo mundo. Todos nós tivemos que rever nossos conceitos, nossas práticas. Agora a luta é para o poder público desacomodar. Todos os alunos têm o direito de conviver com colegas de todos os credos, raças, cores e deficiências. Esse é o real retrato da nossa sociedade. Somos assim. Somos uma mistura. É por isso que a palavra-chave é oportunidade. Se eu não der oportunidade de interação, de tratamento igualitário, não existe desenvolvimento.
O que ainda há nas entrelinhas desta conquista?
É um resultado de muita luta e mostra o quanto ainda falta um novo olhar na sociedade. Um olhar de respeito. Porque eu não respeito quando passo a fazer uma distinção no tratamento. Isso é preconceito. E preconceito em nosso país é crime. Foi a nossa luta na Federação que trouxe à tona essas discussões. A síndrome de Down é o carro chefe da inclusão social no país. Fomos pra linha de frente, sem escudo, exigindo que nossos filhos tivessem acesso ao ensino regular. A deficiência intelectual realmente tem suas peculiaridades. Ela assusta o professor que não está preparado. Acaba sendo um pouco diferente da deficiência física, visual e auditiva. E o despreparo recai sobre as universidades. Que tipo de professor a universidade continua formando? Se o professor estudou todos aqueles anos e se diz despreparado para receber um aluno diferente, qual é o erro e de quem é o erro? Se o MEC está dizendo que a inclusão tem que ser feita, por que as universidades ainda não dão segurança e preparo para um professor? Todos os alunos são diferentes. Nenhum é igual ao outro.
E quantos às escolas que criticam a postura do MEC alegando a falta de um período de adaptação?
A escola teve tempo de se preparar, desde a promulgação da nossa Constituição, em 1988. Dizer que ainda está despreparada… Puxa, é muito tempo! Tem muito professor que fala que não está capacitado, que está sendo obrigado a receber estes alunos. Como assim? Se você não gosta de trabalhar com todo tipo de aluno, rasgue seu diploma. Vá trabalhar em outra profissão. Ele não fez formação específica pra ser professor de um loirinho, de um índio ou só de pessoas de cabelo castanho. Ele fez formação pra ser professor, pra atuar com alunos de forma abrangente. A formação do professor precisa ser continuada. Ele não pode ser formatado. Não formatamos pais e mães. A cada dia, aprendemos a lidar com cada um de nossos filhos, todos diferentes uns dos outros. Cada filho tem uma forma diferente de agir e pensar, um tempo diferente. E o professor precisa aprender a fazer isso com cada aluno. Mesmo em uma classe de 30. Sempre tem um jeito, sempre tem uma forma. É na diversidade que aprendemos isso. É enfrentando o dia a dia.
Vocês conseguem mensurar a qualidade desta inclusão nas escolas?
É muito difícil. Muitos pais olham os números e alegam que não querem ver seus filhos abandonados diante de uma escola sem preparação para atendê-los. Então eu pergunto: você nunca ficou abandonado na escola? O que você pode fazer para ajudar a escola a não abandonar seu filho? Existem crianças sem deficiência que possuem sérias dificuldades na escola. Essas crianças não acabam segregadas em certas instituições por causa disso… Por que meu filho com síndrome de Down precisa? Consegue ver o preconceito?
Todas estas questões não comprovam o quanto o ensino no Brasil enfrenta problemas?
A escola não está boa pra ninguém. Nenhum aluno está saindo nota 10 da escola, com uma formação rica, completa e abrangente. E é nisso que precisamos mexer, investir nossos recursos. É a luta de uma educação de qualidade para todos. Muitos recursos federais estão sendo empregados pra nada. Não vemos resultados… Outro problema é que a escola ainda está em um patamar elevado, na função de ensinar algo. E vivemos na era da troca, do diálogo. A escola precisa adequar-se ao aluno. E esse está sendo um processo demorado e muito difícil. O professor também tem que querer ajustar-se… É difícil ser professor? Sim, eu sei que está muito difícil. Afinal, as famílias estão delegando tudo para a escola. Tudo vira responsabilidade do professor, quando na verdade as famílias precisam trabalhar junto com as escolas. Hoje, não são apenas as famílias que têm um filho com deficiência que têm dificuldades na educação do seu filho. Todas as famílias passam por isso. Todo mundo tem uma deficiência, seja ela visível ou não. Então, graças a Deus, somos parte de uma sociedade anormal – porque se fosse normal, seria muito chata! Precisamos viver todos juntos, um ajudando o outro.
Com esta valorização do ensino regular, qual seria o papel das APAEs e outras escolas especiais?
Essas instituições precisam aceitar a escolarização destas pessoas e trabalhar com os contraturnos, com os tratamentos especializados, as atividades extras… É muito trabalho – talvez mais até do que aquele que exercem hoje. Por exemplo: não é suficiente oferecer meia hora de fonoaudióloga por semana para uma criança com deficiência se desenvolver. Ficaria por conta das APAEs complementar esse tratamento, suprindo a necessidade real da criança.
E por que muitas especulações recaem sobre o fim destas instituições?
A APAE não precisa fechar, precisa apenas repensar seu papel. A APAE de São Paulo é um case ótimo, pois aceitou a proposta de inclusão desde o primeiro momento. E não fechou, está aí sólida… Desde que houve a adequação ao contraturno, eles passaram a trabalhar tanto quanto antes. As APAEs têm um papel importante e fazem um trabalho com extrema competência, com uma qualidade que nenhuma outra instituição faria. Essa história de fechar as APAEs é um mito, pura politicagem. Uma construção de discurso jogada na sociedade com intenções secundárias. Até porque nunca, nenhum governo, sequer mencionou fechar nada. E não é o que nós, enquanto Federação, queremos.
Como trabalhar diante de tantas críticas e na demora por resoluções em prol da inclusão?
Trabalhando mais e mais. Mostrando com nossos próprios filhos que existem possibilidades. É muito fácil para aqueles que têm recursos matricularem suas crianças em uma boa escola particular e esquecerem de toda esta história que acomete outras crianças. Nossa briga é igualitária. Não importa saber apenas que meu filho está bem. Todos os outros filhos precisam estar bem. Ainda existem famílias que nos procuram dizendo que não tem nem comida em casa. Só que quando a mãe procura uma creche para poder trabalhar, ela encontra portas fechadas por ter uma criança com síndrome de Down. Eu tenho que lutar por essa família. Ir à Prefeitura, ao Ministério Público, e mostrar que a escola é direito dela. Ela é cidadã do município e este município precisa dar atendimento à família dela. Alguém precisa fazer esse trabalho que os políticos não fazem. Para onde vão as emendas parlamentares? Nosso movimento nunca recebeu nada, mesmo com tanto trabalho realizado em todo Brasil. A inclusão não é feita virtualmente, via internet. É um movimento de chão, indo atrás, peitando. Nós não temos empresários apoiando nosso movimento – até porque eles estão sendo obrigados a empregar pelas leis de cotas e custam a encontrar quem contratar. Não existem profissionais com deficiência capacitados – e,mais uma vez, o problema volta para a escola.
A solução está no convívio?
Historicamente, nossa forma de olhar a sociedade é de forma separada. Separando, segmentando, fica mais fácil de lidar. Só que isso não faz sentido: o convívio gera respeito, tudo deixa de ser estranho. Quer um exemplo de despreparo? Os médicos. Costumo falar que o preparo destes profissionais é mais chave do que o dos próprios professores. O desrespeito com que passam o diagnóstico tende a impactar no resto da vida daquela família. Eles não sabem lidar com o fato de que aquela criança nasceu com síndrome de Down. Poucos conviveram com uma. Só ouviram falar ou mal recordam do que diziam os livros. Não sabem como essas crianças vivem, do quanto são capazes. Costumam passar a notícia para uma mãe ainda anestesiada ou cheia de dores. Isso é livrar-se do diagnóstico. Vira responsabilidade daquela família correr atrás do significado e das implicações de tudo aquilo. Aí, a mãe sozinha precisa aprender a olhar o filho e não a deficiência. É muita coisa! Falar em convívio e respeito é permitir que a síndrome de Down vá além do universo dos parentes e profissionais especializados. Hoje, o movimento ainda é das famílias envolvidas. Por isso, não acho justo contabilizarmos uma mudança cultural. A real mudança vai acontecer quando os leigos exigirem. Eu sonho com o dia em que um pai irá reclamar com o professor pela falta de alunos com deficiência na sala de seu filho. Os pais precisam exigir esse convívio, que trará ganhos para o filho e para o colega com deficiência. A inclusão verdadeira envolve pessoas sem qualquer envolvimento direto com a deficiência. Peça para trabalhar com uma pessoa deficiente em sua equipe. Sua vida terá mais potencial.
Qual é o real significado de um olhar além da síndrome?
Se eu tivesse olhado somente as impossibilidades da Maíra, teríamos feito tudo diferente e ela não seria essa mulher que tanto nos surpreende. Para isso é preciso derrubar paredes. Ela precisa conviver com tudo e com todos. Não ficar presa aos “nãos” que tantos falam. Uma pessoa com síndrome de Down não pode isso, aquilo, aquilo outro. Quem disse? Eu deixei a Maíra fazer tudo. Daí alguns dizem: “ah, mas eles são mais suscetíveis à violência…” A violência sempre existiu. Que pai não tem medo hoje em dia? Não podemos ficar protegendo estas crianças o tempo todo – e nem nenhuma outra. É a autonomia que faz evoluir. Precisa de limites? É claro. A falta de limites não tem nada a ver com a síndrome de Down. Quando falo de superar os limites, falo sobre ver que seu filho é capaz de superar os “nãos” a cada dia, como qualquer outra criança. Sou feliz porque os pais estão acreditando na autonomia. São inúmeros os casos de pessoas que já são protagonistas de suas próprias histórias. Não deixe de acreditar. Você, pai, muitas vezes, é o pior limitador. E eles podem voar… Por isso, sonhar com uma sociedade igualitária faz parte da nossa caminhada. É deixar cada um viver, sem ninguém impondo qualquer barreira. Nosso principal esforço é mostrar que nada do que fazemos por eles tem que ser pesado. No final, tudo é gostoso. E a gente se aproximando dos outros gera mais força. Eu e você juntos somos mais fortes para atrair um terceiro, um quarto. E aos poucos nossa realidade vai mudando. O país muda.
Por: Helaine Gonçalves, do Instituto Alana
Texto publicado originalmente no Catraca Live em 05/11/2015
Foto: Instituto Alana