O jornalista da Folha, Jairo Marques, que é cadeirante, já está acostumado com manifestações preconceituosas. Mas ele ficou assustado com o número de comentários de ódio postados em seu blog, “Assim como Você” por causa da matéria que escreveu sobre Madeleine Stuart, a modelo australiana que recentemente lançou sua linha de moda na Semana de Moda de Nova York. O autor do livro “Malacabado” conversou sobre o assunto com a Conselheira do Movimento Down, Gisele Fontes.
Jairo, você tem uma coluna/blog na Folha, em que aborda assuntos relacionados de alguma forma à deficiência há bastante tempo. Nesses anos todos, você já tinha tido a experiência de receber comentários de ódio nas suas colunas?
Fui um dos primeiros blogueiros oficiais da Folha. Neste ano, vão ser nove anos de postagens, várias delas provocativas, desbocadas, irreverentes. Comentários de ódio estão sempre presentes, sobretudo nas postagens que mais bombam, que tem mais apelo com o público em geral. Quando um assunto que é pouco difundido ao grande público ganha um destaque, por exemplo, tem um bom espaço na página principal da Folha ou do UOL, uma porção de pessoas que ainda vivem conceitos da idade da pedra sobre a inclusão são atraídas para a leitura. O resultado é que sou bastante xingado seja pela novidade da linguagem ou por apresentar conceitos que vão contra o assistencialismo, ao coitadismo, a uma visão ultrapassada e modorrenta sobre a pessoa com deficiência.
E você tem percebido se essas manifestações têm se intensificado?
Com toda certeza, elas têm se intensificado, se tornado ainda mais agressivas e com tom de assédio. É algo além da divergência de opinião e de abordagem, é apenas a “graça” de causar um mal estar, uma agressão.
Na sua percepção desse feedback, há alguma relação dessa intensificação das manifestações de preconceito contra a pessoa com deficiência e algum contexto específico? Ou é apenas mais um braço da onda de conservadorismo, exclusão e preconceito que vem se firmando ?
Percebo com muita clareza que as manifestações de preconceito contra a pessoa com deficiência estão saindo das sombras, das catacumbas. A questão do direito, por exemplo, já começa a ter oponentes abertos. Há pessoas também que defendem, com outros nomes, a eugenia, o apartamento. Por essa e outras razões, para mim, são inegociáveis discussões como a escola inclusiva, as cotas etc. Tem também o efeito da onda conservadora nisso. Penso que o próximo passo desse desarranjo social que temos vivido, as intolerâncias, sejam frentes mais organizadas e mais atuantes que vão pregar contra gays e pessoas com deficiência dentro de contextos específicos, como já disse, por exemplo, no trabalho, na educação, nos direitos fiscais.
Que estratégia você entende como possível e eficaz para nos prepararmos para esse tempo, que se anuncia como um tempo de resistência e luta ?
A primeira delas é o acesso à informação de qualidade, moderna e ligada ao século 21. Algumas vezes, perdemos muito tempo discutindo o detalhamento da “luta” em vez de armar uma boa estratégia de atuação. Um dos exemplos que mais cito como positivo é o Movimento Down, que foi cativando a sociedade tanto mostrando caminhos possíveis, o que acho maravilhoso, dando pílulas de informação e conscientização. Vejo em outros seguimentos uma fragilização pelo que eu entendo como detalhes: “ah, mas meu filho não pode ser exposto”, “ah, mas vão rir deles”… isso está no pacote. Não há avanço sem que as pessoas com deficiência mostrem a cara e mostrem seu valor real. O tempo de apenas tocar flauta doce acabou… hoje a gente toca cavaquinho e toca fundo no coração das pessoas.
Você pensa em alguma estratégia para fazer com que informações úteis ao desmonte do capacitismo atinjam o público em geral? Não fiquem restritas à comunidade?
Sim, uma delas é usar o poder da publicidade o que, novamente, cito o Movimento Down como pioneiro de sucesso. Desde 2015, as agências de publicidade acenderam o sinal de alerta para uma melhor representação de segmentos que estão pessimamente caracterizados na mídia em geral. Outro ponto importante é a conscientização política e dos políticos, que, de forma geral, são torpes em relação à inclusão. É preciso estar presente nas discussões sociais diversas e mostrando sempre as demandas do público com deficiência. Sinto uma lacuna imensa das pessoas com deficiência no entendimento do grupo social como parte de um conjunto que é hostilizado como os negros, os gays, os índios etc. Essa luta tem pontos de encontro e temos de nos lembrar disso.
Sobre o falar para nós mesmos, é uma máxima que me contraponho desde sempre. Quando eu escrevo um livro e o chamo de “Malacabado”, corro um risco imenso de ser hostilizado pela capa, pela provocação, mas quero correr o risco, quero que alguém nos perceba. O discurso é fundamental para ganhar a atenção das pessoas, para chamá-las minimamente para a reflexão. Não sou um idiota que não tem a menor noção do peso dos termos, do valor da boa representação, como já fui taxado várias vezes e por vários segmentos… o que procuro fazer é jogar uma boa isca… isso é fundamental.. não quero falar sozinho
Jairo, sei que os tempos nos parecem sombrios e que a ameaça de retrocesso aos nossos direitos paira sobre nós, mas, tentando ser positiva e fazendo um restrospecto do que já foi construído por aqueles que chegaram na luta antes de nós, quais são as suas crenças pro futuro ? As positivas…
Isso é extremamente importante. Vou te dar um exemplo cabal. Estamos vivendo uma revolução reprodutiva da pessoa com deficiência. Até dez anos atrás, cadeirante, down, cego não fazia sexo, não transava, não tinha libido. Hoje, amigos malacabados bem próximos a mim que tiveram filhos recentemente são uns dez. Isso tem a ver com o empoderamento da pessoa com deficiência: quando você se sente empoderado, vai lá, namora, casa, tem filhos… transa! E isso também está ligado com acesso ao trabalho, à educação. Dentro da casa dos pais, essa realidade seria mais complicada. Outro ponto muito latente é o acesso à educação. Eu fico me divertindo com as reportagens “inéditas” de pessoas com Down passando em vestibular e entrando na universidade aqhahhahaha. Como são diversas carreiras, ainda teremos muitas dessas reportagens. Estou rindo, mas é muito legal. Elas embutem um risco, que é o modelo, o suprassumo da batatinha, em vez de mostrar que é possível, que os tempos são outros. Mas acho que é um preço que ainda temos de pagar.
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Veja a entrevista de Jairo Marques com o estudante de jornalismo Paulo Madri, para a TV da Universidade Federal de Minas Gerais.