De irmã para irmão

mulher com microfone le texto ao microfone, enquanto homem tem o braco em volta de seus ombros.Juliana Lima Quintas, irmã do Dudu, deu um depoimento que emocionou a todos na celebração pelo Dia Internacional da Síndrome de Down na APAE DF – Asa Norte, que aconteceu no dia 27/3/2019. Obrigada por nos autorizar a publicar o texto, Juliana.

“Bom dia a todos! Agradeço a APAE e a profa. Cleide pelo convite.

Meu nome é Juliana, irmã do Dudu. Na nossa família, somos 3 filhos. Dudu é o mais velho, atualmente com 44 anos. Fábio é o do meio, atualmente com 40 anos; e eu a caçula, com 38 anos.

Ao repassar a historia da minha família até os dias de hoje, eu diria que somos vitoriosos em uma batalha árdua com muitos capítulos.

Recordo-me do dia em que perguntei a minha mãe porque o Dudu era diferente. Acredito que eu tinha uns 7 anos. Como minha mãe foi sábia! Era à noite, e eu estava no quarto dela, sentada no chão perto da cama. Ela me disse, pacientemente: “Ju, o Dudu é realmente diferente! Quando ele estava ainda na minha barriga, na hora de dividir as células, ao invés de irem dois para um lado e dois para o outro, foram três para um lado e um para o outro. Ele não tem as mesmas capacidades que você. ele tem algumas dificuldades”. Lembro-me de ter ido dormir pensando nisso.

Vejo na minha mãe uma brava guerreira. Às vezes não sei dizer como ela deu conta…éramos três, meu pai trabalhava o dia todo e ela, além de gerenciar a casa e a vida escolar de nós três, dava aulas no período matutino. O dinheiro nunca faltou, mas tudo sempre muito planejado, sem excessos. Mérito dos meus pais que sempre andavam com um caderninho de despesas debaixo do braço. E nesse cenário, Dudu estudou em escola especial em Taguatinga, fez fonoaudióloga, natação, psicomotricidade dentre tantos outros investimentos.

No campo da educação doméstica, também admiro muito meus pais por ter exigido de todos nós disciplina e persistência sem abrir mão da solidariedade e do altruísmo, independente do cenário e/ou desafio em que estivéssemos. E essas condições eram para nós três! Quantas vezes minha mãe precisou lidar com o sentimento de “pena” de outras pessoas. Ela corrigia o Dudu e alguém dizia: “Tadinho, ele é especial”. E ela respondia: “é especial, mas precisa ser educado e tem capacidade para aprender. Porque sendo especial já é difícil a aceitação, imagine especial e mal-educado?! Ninguém vai querer…” E aqui eu daria minha primeira recomendação: não tenham receio de educar os filhos de vocês. Façam isso por eles!

Mas pessoalmente eu diria que os capítulos mais difíceis dessa jornada foram no campo afetivo e relacional.

Lidar com o preconceito e a discriminação não foi (e nem é) fácil. E nesse campo, dou grande mérito ao meu pai que nos mostrou o poder da informação e do afeto (juntos) poderiam mudar as pessoas. Tenho vários registros mentais. Lembro-me que fazíamos natação no Sesi em Sobradinho e uma vez por mês havia aula recreativa (na ocasião eu devia ter 10 anos) e Dudu 17. Uma colega me chamou para brincar e quando Dudu

veio sorrindo para brincar conosco, ela me disse: “Foge, aquele menino estranho está vindo”. Eu olhei para ela e disse: não! Ele quer brincar, ele é meu irmão”.

E o que falar da discriminação dentro da própria família? Nossa! É de doer! Esse capítulo é muito difícil! Das infinitas vezes em que um familiar quer tirar foto com os sobrinhos e cita seu nome e “esquece” de chamar o Dudu? Já na adolescência, lembro-me de algumas vezes em que eu e o Fábio saímos da pose da foto e trouxemos o Dudu para a foto… Olhem a segunda lição!! Aprendemos a nos posicionar. Ficamos mais fortes e esse aprendizado também levamos para a vida!

Calma! Nem tudo foi tão difícil assim! Felizmente tínhamos uma grande parceria dentro de casa e também encontramos parceiros maravilhosos ao longo dessa caminhada. Pessoas que aprendem a amar o Dudu como ele é, que riem das gracinhas dele e comemoram suas vitórias conosco e que por muitas vezes, quando estivemos desanimados, nos encheram de coragem, acreditando conosco em um mundo mais harmonioso. Dentre muitos parceiros, lembro-me da professora Hellen, que alfabetizou Dudu, da Diretora Francisca (da escola especial de Taguatinga), do Eriberto, que levava Dudu todo dia para Taguatinga e construiu com ele um laço de amizade e amor indescritíveis, O Luiz Gonzaga, A Eliete, o Professor Sergio Cappi, da Banda, O Jorge, professor da natação, entre tantos outros. Então, aqui eu paro e digo aos que estão começando essa jornada: fiquem tranquilos, com certeza aparecerão parceiros incríveis, pessoas maravilhosas, que estarão juntos de vocês! Pessoas que moram no nosso coração por ter nos ajudado nessa batalha diária, por fazer nossos dias mais leves e por acreditar junto conosco que tudo vai dar certo!

É fato que nós nos dedicamos muito ao Duda, que tentamos ajudá-lo a superar diferentes dificuldades. Mas também preciso dizer o quanto aprendemos com ele. Dudu nos ensinou a olhar o outro de outra forma, a respeitar as diferenças, a ter calma, a sermos resilientes, espontâneos, a dar valor aos afetos e às relações, a cultivar os laços entre nós mesmos, a ver o mundo de uma forma mais suave e ingênua (porque a vida vai nos deixando duros, né?). Quantas vezes ele nos desarmou com seus abraços e beijos? Obrigada, Dudu, por nos lembrar a cada dia que não somos somente seres operacionais; obrigada por nos ensinar o valor do amor. Obrigada por nos amar e nos aceitar como somos!

Tenho infinitas memórias para relatar. É difícil sintetizar tudo o que experienciamos. O tempo passou. Dudu, meu maior companheiro de brincadeiras da infância, está envelhecendo: não tem mais tanta energia. Não passa horas dançando sozinho dentro do quarto. Agora ele tem osteoporose, desenvolveu alergia a lactose, tem refluxo, dores nas articulações, já fez cirurgia de miopia. É! Eles envelhecem mais rápido que nós. Hoje ele tem até geriatra. Definitivamente continua sendo muito bem cuidado. E mais uma vez, mérito dos meus pais. Hoje, eu já adulta, e com família em formação, tenho como maior desafio lidar com o envelhecimento do Dudu e dos meus pais ao

mesmo tempo. Meus pais ainda mantem o mesmo cuidado e comprometimento com o Duda! Mas não são mais os mesmos, estão organicamente velhos e por isso, mais cansados. E como mostrar a eles que o cansaço não é sinônimo de fracasso? Como desaquecê-los do papel de guerreiro, tão marcante ao longo dessa jornada? Ainda não tenho resposta para esse desafio. Mas a história até aqui me mostrou que conseguiremos lidar com esse novo cenário. Que a persistência, o cuidado e a dedicação ensinadas a nós nos nortearão; que a informação e o afeto (juntos) modificam as pessoas; que os parceiros incríveis de jornada, continuarão a aparecer e nos mostrar que tudo vai continuar dando certo, que não estamos sós.

E aproveito também nesse contexto para agradecer a APAE e a todos que estão envolvidos nessa causa, que vestem a camisa da instituição e se tornam parceiros incríveis de jornada. Nesse grande grupo, meu agradecimento pessoal a querida Cleide, por toda a dedicação, afeto e cuidado ao meu irmão, aos meus pais e a toda a nossa família!

Obrigada!

Brasília, 27 de março de 2019.

Juliana Lima Quintas”