Autor: Jorge Marcio Pereira de Andrade
Eu não interdito, nós não os interditamos, porém eles ainda interditam.
No dia 03 de maio será realizada uma audiência sobre a Interdição Legal total de pessoas com deficiência intelectual e pessoas com paralisia cerebral severa. Ocorrerá um debate proposto pelos deputados Mandetta (DEM-MS) e Rosinha da Adefal (PTdo B-AL).
O tema é de meu total interesse/dedicação há muitos anos. Já participei há mais de 15 anos atrás de um debate promovido no Centro Cultural Banco do Brasil, RJ, de uma acirrada discussão sobre a interdição total de pessoas com deficiência intelectual. Há época já manifestava minhas inquietações bioéticas e sociais sobre o tema.
A palavra interdição, para além de seu sentido legal, implica, para o senso comum, a restrição de alguns direitos fundamentais. É a proibição para os atos da vida civil por aqueles que forem considerados “incapazes”. Nessa perspectiva é que sempre interrogarei sua possibilidade, necessidade e sua aplicabilidade. Continuo sendo apenas um defensor ativista de direitos humanos ao refletir sobre ela.
Já há uma visão mundial sobre o tema. Foi expresso na Declaração de Montreal sobre a Deficiência Intelectual, em 2004, na cidade de Montreal, Canadá. Tive a oportunidade de traduzi-la para o português. Venho difundindo-a desde então para que possamos aprofundar e rever nossos preconceitos sobre as deficiências intelectuais e os sujeitos que as vivenciam.
E, lá fica claro que o paradigma que irá sustentar essa declaração que foi proposta pela OPAS/OMS, ambas no âmbito da medicina e da saúde, é o que irá ser o eixo principal do que se estabeleceu dois anos depois com a Convenção (ONU-2006). Em ambos os documentos os princípios fundadores são os Direitos Humanos. Mas que princípios norteariam uma interdição legal total?
Em princípio a palavra interdição vai de encontro com um dos direitos fundamentais, quando escolhe ou elege um ou mais sujeitos, a partir de sua condição de saúde, idade ou situação de vulnerabilidade. Os que estão, no momento, sendo o alvo dessa audiência são as pessoas com síndrome de Down e as com paralisias cerebrais graves.
No campo da Síndrome de Down já escrevi sobre sua autonomia e os exemplos de sua inclusão social só tem comprovado que são “cidadãos e cidadãs”. No caso de pessoas com Paralisias Cerebrais ainda temos um campo nebuloso e confuso sobre sua classificação. O conceito de grave vai até onde?
É aí que há sempre o perigo do preconceito pela manutenção do paradigma biomédico. As pessoas com paralisias cerebrais são vistas, objetivadas, assujeitas e judicializadas como “doentes” ou “deficientes mentais”.
Há sim quadros ou condições de saúde que levam a um maior número de restrições ou perdas de funcionalidade. Porém são em número muito menor a cada dia que passa. E, para o direito, na visão reducionista, são as pessoas “portadoras”, incapazes com “necessidades especiais”. Ainda não há uma abertura para os novos conceitos e visões sobre estes cidadãos/ãs, principalmente em algumas instâncias do Judiciário.
A noção de severidade dos quadros foi e é a maior justificativa também para o processo de institucionalização de pessoas com paralisias cerebrais ou síndrome de Down. Ambos os quadros formaram o que se conceituava na CID-10 quadros de “retardamento mental”. Há ainda muitos operadores do direito e profissionais da saúde que se baseiam nessas visões e conceitos arraigados erroneamente.
E para tais graves, moderados ou leves, ou então, historicamente, os imbecis, os débeis, os cretinos, ou, reducionisticamente, os retardados mentais, a melhor forma de cuidado e reabilitação só poderia ocorrer em espaços especializados e sob internação.
A maior defesa que já vi da interdição sempre foi direcionada por entidades que cuidam ou prestam assistência contínua a esses cidadãos e cidadãs sob reclusão. E a mais veemente foram as que famílias, principalmente mães, defendiam no sentido de “preservar o futuro” de seus filhos com deficiência considerada como “invalidez total”.
Mas o que é essa interdição judicial? Em pesquisa na Internet encontrei um dos documentos mais recentes sobre o tema. É do Chile (2011) e trata da “interdicción, proteción patrimonial y derechos humanos” (interdição, proteção patrimonial e direitos humanos). Nele se esclarece que a interdição é uma sentença judicial cujo efeito principal é a substituição das escolhas e decisões de uma pessoa com deficiência pelas de outra pessoa, que no direito recebe o nome de curador.
Esta figura está prevista também na Declaração de Montreal. Ressalta-se nela que “todas as pessoas com deficiências intelectuais são cidadãos plenos, iguais perante a lei e como tais devem exercer seus direitos com base no respeito nas diferenças e nas suas escolhas e decisões individuais”. Portanto, como na Convenção, estão garantidas as suas capacidades de decisão e escolha.
Então, considerando-se esta afirmação, em que condições poderiam ser solicitadas as interdições? Para a Declaração de Montreal: “A. As pessoas com deficiências intelectuais têm os mesmos direitos que outras pessoas de tomar decisões sobre suas próprias vidas. Mesmo que algumas pessoas possam ter dificuldades de fazer escolhas, formular decisões e comunicar suas preferências, elas podem tomar decisões acertadas para melhorar seu desenvolvimento pessoal, seus relacionamentos e sua participação nas suas comunidades;…”
É, então, o Estado que deverá proporcionar a proteção e a garantia de que estes cidadãos e cidadãs possam exercer, com os avanços legais e sócio-políticos, o acesso e utilização de serviços adequados que sejam baseados nas necessidades, assim como no direito ao consentimento informado e livre.
Com os avanços em ajudas técnicas, tecnologias assistivas e outros recursos das novas tecnologias quem são os que não seriam “capazes” da expressão de suas vontades e decisões?
No presente e no futuro sabemos que ainda teremos muitos excluídos do mundo digital e das novas tecnologias de informação, e entre estes estarão muitos sujeitos com deficiência intelectual. Porém o nosso dever será o de, caminhando no desenho universal, atender todas as suas necessidades, especificidades, “disfuncionalidades” ou incapacidades, e, principalmente as suas singularidades.
Tanto para a Declaração de Montreal como em outros documentos de cunho universalista encontraremos que o exercício da curatela deve ser relativizado. Porém o que encontramos é uma dura realidade de manutenção de pessoas com deficiência intelectual ou com paralisia cerebral em regimes de cativeiros, hospitais ou espaços de segregação. Muitos deles promovidos pelas próprias famílias desses sujeitos assujeitados.
É, dentro dessa realidade, brasileira em especial, que precisamos garantir que “as pessoas com deficiências intelectuais devem ser apoiadas para que tomem suas decisões, as comuniquem e estas sejam respeitadas …”
Com a recente tomada de posição do nosso Governo com o Plano Viver sem Limites, e a decisão de subsidiar as pesquisas e desenvolvimentos em tecnologias assistivas, deveremos olhar para o futuro na tomada de uma decisão legal de interdição.
Aqueles ou aquelas que, hoje, não estão podendo se expressar por meios já conhecidos, em futuro não muito longínquo, utilizará meios avançados e nada onerosos para a comunicação de suas opiniões, ideias, sentimentos e decisões.
Já em 2004, em Montreal se afirmava: “B. Sob nenhuma condição ou circunstância as pessoas com deficiências intelectuais devem ser consideradas totalmente incompetentes para tomar decisões baseadas apenas em sua deficiência. Somente em circunstâncias mais extraordinárias o direito legal das pessoas com deficiência intelectual para tomada de suas próprias decisões poderá ser legalmente interditado.”
Há, portanto uma expressão afirmativa do direito de pessoas com deficiência intelectual, ou mesmo com paralisia cerebral, que não devem ser sinônimos ou equivalências. A maioria das pessoas com paralisias cerebrais NÃO SÃO pessoas com deficiências intelectuais. Apenas uma porcentagem pequena poderá apresentar alterações cognitivas ou restrições de funcionalidade psicomotora que prejudicará sua interação e expressão ao meio ambiente.
Ambas as condições devem ser expressão de direitos humanos. Portanto direitos que são inalienáveis, indivisíveis, interdependentes, interelacionados e universais. E, se fundamentarmos, nesses princípios, a prática legal das interdições, a partir desse encontro e debate na Câmara dos Deputados, terá de abandonar o paradigma biomédico.
Surgirá, inclusive com a presença, que espero não falte de nossa ministra Maria do Rosário Nunes, da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, a efetivação dos Direitos Humanos como linha mestra de todos os novos modelos legais para pessoas com deficiência, sejam intelectuais ou não.
Lembrando a temporalidade vertiginosa em que vivemos, assim como as necessárias mudanças legais, os processos de interdição não devem ficar restritos aos laudos de peritos forenses ou psiquiatras. O nosso olhar médico nos leva para os ‘’mutirões’’ de ações de interdição, onde a Síndrome de Down está no mesmo nível que as pessoas com Doença de Alzheimer.Ainda trabalhamos com a CID-10 e desconhecemos a CIF-2006.
E as curatelas deverão ser de uma curta duração, principalmente aquelas que envolvem interesses patrimoniais ou alegações unicamente prestadas pelos familiares. Portanto, nesse campo é indispensável que o Estado e o Poder Judiciário observem que: “Qualquer interdição deverá ser por um período de tempo limitado, sujeito as revisões periódicas e, com respeito apenas a estas decisões, pelas quais será determinada uma autoridade independente, para determinar a capacidade legal”.
Finalmente, reforçando o que já foi declarado em Montreal, afirmar que: “C. A autoridade independente, acima mencionada, deve encontrar evidências claras e consistentes de que apesar dos apoios necessários, todas as alternativas restritivas de indicar e nomear um representante pessoal substituto foram, previamente, esgotadas. Esta autoridade independente deverá respeitar o direito a um processo jurídico, incluindo o direito individual de ser notificado, ser ouvido, apresentar provas ou testemunhos a seu favor, ser representado por um ou mais pessoas de sua confiança e escolha, para sustentar qualquer evidência em uma audiência, assim como apelar de qualquer decisão perante um tribunal superior”.
Era esse olhar para o futuro dos direitos humanos de pessoas com deficiência intelectual que há 08 anos se declarou. HOJE, como parte de um movimento para a afirmação política das pessoas com deficiência, qual visão futurista devemos criar em relação ao nosso próprio futuro?
Excelências, Meritíssimos, Ilustríssimos Senhores e Senhoras, que já conseguiram afirmar o direito sexual e reprodutivo das mulheres com a recente decisão do STJ sobre anencefalia, lhes faço um único pedido: – Eu, aqui cidadão brasileiro, desejo de coração que suas mentes continuem no processo evolutivo e transformador de todas as nossas leis.
Então, os “cida-downs” e os chamados de “paralíticos” poderão se orgulhar de um novo papel a exercer: serão os respeitados auto defensores dos seus direitos humanos. Não há como exercitar a cidadania sem um exercício de nossas autonomias e desejos mais profundos.
Comemorei, com minha família reunida, o 102º (centésimo segundo) aniversário de meu pai. Alguns devem se perguntar sobre sua capacidade de decisão, ou sua interdição. Com sua lucidez, garantida pelo desejo de vida, ainda é e será respeitado em suas decisões, mesmo as que nos pareçam estarem erradas ou contra nossa vontade.
Eu lhe perguntei se ainda irá acompanhar a sua querida Romaria a pé até Aparecida do Norte, distante mais de 300 km de minha cidade natal, ponderando sobre as baixas temperaturas e o risco de saúde de um ancião, e ele afirmativamente me respondeu: – “E por que não iria? Eu ainda não morri …”. Ele irá como o maratonista com Paralisia Cerebral até o fim de sua jornada, seguindo sua fé e sua determinação/decisão.
E podem ter certeza de que ele, se interrogado for, afirmará como um desembargador que negou uma interdição recentemente noticiada: “De qualquer sorte, não se pode considerar a idade avançada do apelado (74 anos, atualmente) ou a preferência deste por um estilo de vida mais simples como motivos para interditá-lo. Veja-se, além disso, que velhice não se confunde com senilidade”…
Assim não podemos continuar confundindo a situação de deficiência com a noção de incapacidade total, para sempre, decretada. A interdição total deverá ser a exceção da exceção, e, ainda assim respeitar, antes que velhos códigos, a urgente ativação, transversalidade e implementação dos Direitos Humanos.
E, muito raramente, muito poucos, quase nenhum sujeito com deficiência intelectual ou com paralisia cerebral dita severa estará sendo submetido à perda de suas liberdades…
Eu, no futuro, espero não me interditarei, nós não seremos interditados, e eles, tornados mais justos e sábios, aprenderão o que é ser/estar interditado… pois todos/todas, um dia, aprendemos a viver/conviver com limites…