A manhã de sábado, do dia 22 de março, foi bastante ocupada para a Dra. Patrícia Salmona, pediatra com especialização em síndrome de Down. Depois de deixar seu bebê com menos de um ano em casa, partiu para o 4° Simpósio Internacional da Síndrome de Down: Saúde e Bem-estar: acesso e igualdade para todos, com uma função importante. Pega de surpresa na véspera com a notícia de um acidente sofrido pelo Dr. Zan Mustacchi, que se ausentaria do Simpósio, a médica precisava ajudar na reorganização das palestras para dar conta da ausência importante, além de ser responsável por sua própria apresentação. A pediatra, que soma mais de dez anos de experiência com pacientes com síndrome de Down, achou mesmo assim um tempinho para falar com o Movimento Down.
O que a levou a buscar uma especialização em síndrome de Down? Como veio a trabalhar com o Dr. Zan Mustacchi, grande especialista no assunto?
Eu tenho uma relação de parentesco com o Dr. Zan. Ele é primo de primeiro grau do meu pai e também foi meu pediatra. Nós já éramos próximos e, a partir do momento em que eu escolhi fazer medicina, ele passou a me convidar para acompanhá-lo no Hospital Infantil Darcy Vargas (hospital público de São Paulo que faz parte do SUS – Sistema Único de Saúde) e na clínica particular do CEPEC (Centro de Estudos e Pesquisas de São Paulo). Eu fui me envolvendo e fui gostando do trabalho que ele fazia. Desde então, ele norteia toda a minha formação e carreira. Eu fiz pediatria e depois dois anos de acompanhamento com o Dr. Zan no hospital infantil Darci Vargas e também em seu consultório particular. Nesses dois anos, entre 2006 e 2008, atuei mais na área de genética. A partir de agosto de 2005, fiz também um ano e meio na pós-graduação em síndrome de Down, idealizada e criada por ele.
Quais são as diferenças entre a rotina do hospital público e do consultório particular? Como a área de pesquisa se integra ao trabalho com os pacientes com síndrome de Down?
Existe uma diferença grande porque a demanda no Hospital Infantil Darcy Vargas é muito maior. Como consequência, o tempo da consulta e a periodicidade em que eu revejo os pacientes é diferente. No Darcy Vargas, as consultas são um pouco mais curtas e a periodicidade entre elas é um pouco maior. Mas o importante é que conseguimos atender um número elevado de pessoas. Atualmente o Dr. Zan tem, somando todos os pacientes, em torno de 7.500 pessoas cadastradas. A parte da pesquisa, na verdade, se beneficia da experiência que adquirimos ao conviver com os pacientes e seus familiares nos dois espaços, tanto na clínica particular quanto no hospital público.
Como é trabalhar com o Dr. Zan Mustacchi?
Primeiro é um prazer. Eu sou e vou ser eternamente grata a ele. Ele cuidou de toda a minha formação e também agora acompanha a minha parte profissional. São raras as pessoas que podem trabalhar, lado a lado, com seus ídolos. Eu estou sempre aprendendo com ele ao longo desses mais de 10 anos de convívio. É uma honra para mim trabalhar com ele.
Em que momento as crianças com síndrome de Down chegam aos hospital infantil Darcy Vargas e ao consultório particular?
Como o hospital não é o que chamamos de hospital de portas abertas, em que a criança chega via pronto socorro, geralmente elas são referenciadas, ou seja, chegam encaminhadas de outros serviços. Mas geralmente chegam ainda bebês. Já no consultório, esse perfil mudou: temos passado a receber as mães ainda como gestantes, já que muitas sabem que estão esperando um bebê com síndrome de Down antes do nascimento.
Como é esse trabalho com as gestantes?
É muito importante não somente para acolher e dar uma boa primeira notícia mas também para melhorarmos o nosso trabalho na sala de parto. Nos preocupamos bastante com isso já que metade dos bebês com síndrome de Down nascem com cardiopatia e, desses, 25% vão precisar passar por uma cirurgia cardíaca. Eles também têm mais chances de alterações renais e gástricas. Há uma séria de pequenas diferenças que conseguimos checar intrauterinamente porque já temos tecnologia para isso. Com uma sala de parto mais bem preparada, a mãe fica muito mais segura. Com os diagnósticos estabelecidos com relação à doenças ligadas à síndrome antes mesmo do nascimento, a família se sente mais amparada. Para a criança, a diferença é imensa quando o diagnóstico é dado no pré-natal.
O que é importante no momento do diagnóstico de um bebê com síndrome de Down?
Praticamente todos nós imaginamos uma criança perfeita, a mais linda possível, a mais inteligente possível. Isso é uma coisa que talvez nem seja muito saudável, mas é o que no nosso cérebro acaba projetando. E quando você tem uma quebra nessa projeção, inicialmente tem-se uma frustração. Isso é da natureza humana. Então precisa ter um profissional nesse momento para mostrar o que é, na verdade, uma criança com síndrome de Down. Muitos desses pais nunca tiveram sequer contato com pessoas com síndrome de Down. As pessoas geralmente tem medo do que desconhecem. Leva um tempo até perceber que seu filho vai ter uma vida praticamente normal. Por isso que é necessária uma boa equipe para dar essa primeira notícia. Ainda é um assunto difícil e nem todos os profissionais estão preparados para isso. Acho que o vínculo da criança com a mãe e como as coisas vão transcorrer nos primeiros meses de vida do bebê estão intimamente relacionados à forma como é dada essa primeira notícia. Muitas pessoas reclamam desse momento da notícia, de que é dado de forma inadequada, de maneira abrupta. Estamos começando a preparar os profissionais ainda durante a formação acadêmica e residência. Mas ainda muito pouco é investido durante a formação médica no sentido de ensiná-los a dar essa notícia aos pais. Em minha opinião, esse trabalho precisa ser feito ainda durante a faculdade. Estamos avançando neste sentido mas muito ainda precisa ser melhorado porque há muita informação defasada. E, como disse, a hora da notícia é um momento importantíssimo e delicado já que vai haver uma quebra de expectativas dos pais. É nesse momento que a família precisa de um suporte adequado. Temos lutado muito para melhorar esse ponto.
Como é a especialização em síndrome de Down? Qual o objetivo da especialidade?
A especialização em síndrome de Down surgiu em 2006 exatamente para complementar a formação dos profissionais de saúde. Percebíamos que a síndrome de Down era um assunto específico, com várias lacunas, e tínhamos uma demanda para especialistas voltados para atender pessoas com síndrome de Down. A especialização foi um projeto sonhado pelo Dr. Zan, que o implementou passo a passo até conseguir que fosse reconhecido pelo MEC como uma pós-graduação lato sensu. Todos os profissionais que cursam a especialização falam de como não seria possível ter esse tipo de formação tão completa durante a graduação. A carga horária total é de 360 horas e o curso é bem completo, incluindo a parte cirúrgica, as terapias, odontologia e também uma base sobre estatísticas e pesquisas.
Como é a relação entre pesquisa na área de síndrome de Down e o atendimento aos pacientes no consultório e hospital?
Acho que a pesquisa e o atendimento aos pacientes estão diretamente relacionados. A clínica, a troca diária com os pacientes e os pais, ajuda a mostrar o que é relevante. Ideias para pesquisas sobram, mas é necessário saber priorizar ente as várias opções e aí nada como a rotina com os pacientes para determinar os parâmetros e mostrar o que é importante.
O Dia Internacional da Síndrome de Down desse ano tem como tema a saúde e o bem-estar. Quais são os principais desafios na área de saúde para pessoas com síndrome de Down?
Acho que progredimos muito. A expectativa de vida de uma pessoa com síndrome de Down era de 30 a 35 anos até 1970. Agora está entre 60 e 65 anos. Claro que o movimento dos pais, da família, ajudou muito no ganho dessa expectativa de vida. Mas não dá para esquecer que a medicina evoluiu bastante, principalmente na área de cirurgia cardíaca, e coloborou com a melhora do quadro das pessoas com síndrome de Down. Progredimos bastante mas ainda temos um longo caminho a percorrer. A nossa intenção é sempre aprender mais sobre as especificidades de crianças e adultos com síndrome de Down e divulgar o nosso conhecimento, através de simpósios e congressos, para que a informação chegue ao maior número possível de pessoas, sejam profissionais ou familiares de pessoas com síndrome de Down.