Por: Camille Gavioli, Flávia Ranoya e Renata Abbamonte
Iremos discorrer sobre a prática do Acompanhamento Terapêutico (AT) realizado com uma criança com necessidades educacionais especiais, em uma escola da rede privada de ensino.
O AT é um dispositivo clínico que tem sido cada vez mais usual nas escolas, principalmente na rede particular de ensino e que pretende propiciar a inclusão de crianças que possuem algum comprometimento no desenvolvimento. Este trabalho que iremos apresentar nos possibilitou a abertura de diversas interrogações sobre a aplicação desta prática nas escolas, no sentido de nos questionarmos sobre quais seriam as funções do acompanhante e mesmo as vantagens e desvantagens deste profissional dentro da escola. É importante destacarmos que apesar da prática do Acompanhamento Terapêutico estar sendo cada vez mais difundida nas escolas, observamos que ela ainda não tem sido suficientemente debatida e questionada. Nossa tentativa aqui é abrir um espaço para a interlocução, pois entendemos que a função do AT, enquanto suposto agente da inclusão escolar precisa ser revista.
Retomemos então a definição sobre o Acompanhamento Terapêutico. Resumidamente, o acompanhamento terapêutico é uma modalidade de atendimento, cuja proposta é de auxiliar os pacientes que apresentam distúrbios graves e que estão à margem da sociedade, em sua reintegração social. Esse nome é dado oficialmente aos ATs que trabalham nas ruas, fora de qualquer instituição, e tem sido um termo utilizado, por empréstimo, para identificar esta prática na escola. O empréstimo do termo pode ser entendido pela função que o acompanhante possui em escutar, dar voz e encaminhar, in loco, as construções particulares de cada sujeito para as diversas problemáticas que enfrentam no laço social.
Mas para a educação, o pedido da presença de um AT não necessariamente tem a ver com questões subjetivas. Podemos dizer que, na maioria das vezes, a demanda em jogo é de que o AT possa responder pelas atitudes e pela educação da criança ainda não adaptada ao universo escolar e, com a qual, o corpo docente acredita não saber lidar.
Estamos nos referindo aqui as crianças que apresentam Distúrbios Globais do Desenvolvimento (DGD)[1], crianças que por uma falha na constituição subjetiva, não têm instalado o desejo de saber ou a curiosidade em aprender.
Quando a escola tem que trabalhar com crianças que resistem à aprendizagem, é despertada a vivência de insuficiência nos educadores, ou seja, a vivência de que não conseguem ensinar estas crianças. Ora, os alunos que resistem à aprendizagem, contestam, de maneiras particulares (seja recusando a aprendizagem, seja agredindo os professores, ou ainda, realizando outros atos inadequados), a eficácia da técnica e da educação formal estabelecida pela norma educativa.
De fato, decifrar o que querem dizer estes atos de resistências dos alunos não é tarefa simples, uma vez que apontam para a própria resistência da escola em se desprender de seus ideais pedagógicos/educacionais.
Diante destes casos, fica imaginariamente reforçada, para os educadores, a idéia de que haveria um problema localizado exclusivamente na criança. Desta maneira, passam a acreditar que para estes alunos que não aprendem o conteúdo formal, a saída seria a educação especializada.
Mas será que de fato o problema é apenas individual e localizável nestes alunos? Será que a escola regular não tem algo a ver com estas problemáticas?
Neste sentido, algumas escolas encontram no AT a possibilidade de resolver este impasse, pois, ele uniria – dentro do imaginário escolar -, a função de ser um suposto especialista, ou seja, o portador do saber sobre o aluno “com distúrbios no desenvolvimento”, trabalhando dentro de uma escola não especial.
Como então o AT se posicionaria diante desta demanda escolar? Como acolher e manejar esta situação no sentido de poder engajar a escola enquanto uma instituição responsável em educar crianças, independentemente de serem, ou não, especiais?
Passaremos então a apresentar um caso para discutirmos mais detalhadamente como entendemos a função do AT, que tem como direção de seu trabalho, incluir a escola no processo de inclusão do aluno.
Este relato consiste na inserção de Rafael, de sete anos, no jardim II, numa escola da rede particular de ensino. Esse aluno já freqüentava a escola há dois anos e segundo a coordenação, “ainda não estava aprendendo”. Diante desta impossibilidade da escola em
ensiná-lo, decidiram chamar um acompanhante, que estaria ao lado de Rafael o tempo todo durante a rotina escolar, a fim de ajudá-lo nas atividades e no seu desenvolvimento cognitivo.
O enquadre deste trabalho foi estabelecido pela escola e aceito pelo AT, que, a partir de sua entrada, pôde perceber que esta criança demandava a presença de um AT e de intervenções intensas direcionadas na instauração da linguagem no lugar das manifestações corporais que Rafael apresentava. Quando Rafael falava, apresentava uma fala estereotipada, repetitiva, com um repertório muito curto e fixo (dirigia-se várias vezes à mesma pessoa para dizer “Oi, tudo bem?”, “Qual o seu nome?”), não conseguia se situar diante das regras, tendo dificuldade de aderir a elas, tinha uma reação corporal de resistência aos limites (reagia agressivamente) e às mudanças (largava o corpo, recusando-se a sair do lugar).
O início desse trabalho caracterizou-se, portanto, por um momento de ambientação do AT e também da observação do que se passava na relação de Rafael com a classe. Desta maneira, tornava-se claro que era preciso colocar em palavras os atos bizarros e abruptos que Rafael manifestava, intervenções que iriam no sentido de conter o imaginário que estas ocorrências desencadeavam na professora e nos outros alunos, ocorrências estas, que poderiam tomar proporções ainda maiores.
Um exemplo disto se deu quando Rafael, em um momento em que se colocou fora da situação de roda, ameaçava, como já havia feito anteriormente, empurrar a carteira na direção dos colegas. Este ato de Rafael foi contido pelo AT, que, evocando a participação da professora nesta situação, pôs em palavras sua leitura de que Rafael estava tentando dizer algo para o grupo, ou seja, havia a suposição de que seu ato era uma manifestação de que talvez quisesse se incluir no grupo.
Neste caso, o AT realizou a função de ser porta-voz do aluno, indicando para ele e para os outros a possibilidade de ser reconhecido não só como aquele que bagunça, atrapalha e detona. Uma intervenção como esta pode proporcionar a essas crianças, a saída do lugar estigmatizado que muitas vezes ocupam na escola. Para o professor, esta leitura cria a possibilidade de que ele se espelhe no AT e passe também a supor que o aluno tenha algo a dizer.
O acompanhante funciona, então, como testemunha do que acontece nas situações cotidianas que o aluno vivencia na escola. Sua presença possibilita o reconhecimento das produções do aluno, assim como de suas conquistas, como ocorreu com Rafael, em uma situação em que a professora lhe demandou ler a palavra chocolate e ele o fez corretamente. Fato que causou surpresa, pois ele supostamente não estava alfabetizado. O AT pôde, com sua presença, testemunhar aquela cena, e, desta maneira, validar a ação de Rafael, sublinhando-a como uma conquista. As conseqüências desta ocorrência foram enormes, pois a professora passou a perceber que ele tinha recursos para ler.
Fica claro que nem sempre estas crianças responderão aos educadores de maneira típica. Neste sentido, a presença do AT pode funcionar como aquele que faz a interlocução, mediando o ideal do professor e a realidade que estes alunos lhe apresentam no cotidiano escolar.
Estas são algumas das funções do AT na escola que podemos destacar neste trabalho, que se direcionam na perspectiva da Educação Terapêutica, quer dizer, de alguém que sustenta, para a criança, as regras que regem aquela instituição, ao mesmo tempo em que dá lugar, dá voz ao aparecimento de seus interesses.
Como diz Kupfer (2000): “a proposta da Educação Terapêutica é instituir o simbólico no real (…) não é apenas educação em seu sentido clássico, pois não visa moldar a criança ao ideal do eu do educador (…) Este precisa apresentar materiais, sugerir caminhos (…) Ao mesmo tempo, deve escutar o pouco de sujeito que ali por vezes emerge”.
Os efeitos destas intervenções são visíveis quando pensamos nas mudanças de Rafael ao longo deste acompanhamento, que foram desde não fazer mais xixi na calça em protesto ao ouvir um não, até mentir para fazer algo não permitido, como por exemplo, dizer que ia ao banheiro (que era uma saída permitida) quando, na verdade, saía para passear pela escola. Mudanças consideráveis, que, no entanto, não eram reconhecidas pela escola, que insistia na presença do AT para “auxiliar a professora no trabalho com Rafael, pois ela não daria conta sozinha”.
É interessante que, ao falar que queria manter o acompanhante para auxiliar a professora, a escola estava dizendo, não mais de uma dificuldade de Rafael, mas de uma dificuldade dela em não conseguir dar o suporte necessário para o trabalho da professora. Entretanto, não abria espaço para esta discussão, não assumindo a parte de responsabilidade que lhe cabia na inclusão de seu aluno.
O resultado disto foi que, aos olhos da escola, ficou centrada em Rafael a incapacidade, o que a afastou do confrontamento com suas próprias incapacidades. Apesar do AT sustentar, em alguns momentos, sua não permanência ao lado de Rafael, o fato de Rafael ainda precisar, segundo a escola, de um acompanhante o tempo todo, de certa forma apagava seus avanços.
Concluímos então que, um acompanhante, in loco, no lugar onde se constroem laços sociais, abre a possibilidade para uma criança que ainda não fez essa construção, estar e permanecer na escola. O AT é sem dúvida um agente facilitador deste processo de escolarização, que pode, sem sua presença, ser desestruturante e insuportável para a escola e para a criança. Por outro lado, sua presença constante pode evitar uma mobilização por parte da escola na busca de outras formas de trabalhar e conseqüentemente inviabilizar a descoberta de possíveis estratégias educacionais que implique na revisão de sua prática.
É possível, portanto, o AT estar no lugar de agente da inclusão na medida em ele tenha uma circulação pela instituição, produzindo questionamentos na escola e sempre atento a quando e como deve fazer sua entrada em sala de aula e não lá permanecer esquecido e excluído junto ao aluno.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
De Lajonquière, L. (1999). Infância e Ilusão (Psico) Pedagógica: escritos de psicanálise e educação. Petrópolis, RJ, Ed. Vozes.
Jerusalinsky, A. (1997) A escolarização de Crianças Psicóticas. Estilos da Clínica: revista sobre a infância com problemas. São Paulo, IPUSP, ano II, vol. 2, pg. 59.
Kupfer, M. C. (2000) Educação para o Futuro: psicanálise e educação. São Paulo, SP, Escuta.
Patto, M. H. S. (1993) A Produção do Fracasso Escolar. São Paulo, SP, T. A. Queiroz, 3a. edição.
Vorcaro, A. (1996). Psicanálise e Prática Interdisciplinar. Revista Pulsional. São Paulo, SP, ano IX, vol.87, pg. 41.