“O Filho Eterno” ou “A Egotrip de um Pai”?

 

 

Veja a opinião de Tathi Piancastelli em link no final da página.
Veja a opinião de Tathi Piancastelli em link no final da página.

Com o lançamento do filme “O Filho Eterno”, o Movimento Down gostaria de aprofundar o debate sobre o assunto. Compartilhamos a opinião de Gisele Gato, e de Tathiana Piancastelli sobre o filme. E você, o que acha disso?

De onde vem o luto dos pais de recém nascidos que chegam diferentes do que se esperava? Você já parou pra pensar sobre isso? Será que este luto é algo que existe naturalmente dentro de nós, aguardando para se realizar, sempre como uma possibilidade? Ou será que ele é resultado de uma construção social?

Para responder a essa pergunta precisamos entender, afinal, o que é esse luto, do que se trata. O luto é o resultado da constatação de que a criança chegou diferente do imaginado. O conceito de normalidade (assim como o de deficiência) é construído socialmente. Por isso, para nossa sociedade, o nascimento de uma criança diferente da ‘normalidade’ causa preocupação aos pais.

No entanto, a simples convivência com o filho mostra gradativamente aos pais o quanto essa noção de normalidade é falsa e, em pouco tempo, mais para uns, menos para outros, é possível que todos aqueles conceitos pré formados sobre a pessoa com deficiência se dissolvam no imaginário das suas famílias, restando a certeza de que não há um padrão de normalidade e que ninguém é inferior a ninguém.

Todos nós somos diferentes entre nós mesmos e a normalidade é exatamente essa diferença.

Se eu não desconstruo minhas pré compreensões sobre a pessoa com deficiência, durante a minha trajetória de enlutamento, eu mantenho equivocada e preconceituosa a minha visão sobre o meu filho. E se eu não ofereço à sociedade um contraponto a essa visão negativa, eu estou ajudando a manter consolidado o pré-conceito sobre as pessoas com deficiência, alimentando e renovando o preconceito.

E é esse o contexto da narrativa do livro/peça/filme “O Filho Eterno”. O conflito interno de um homem que não conseguiu perceber o quanto suas compreensões sobre a síndrome de Down eram equivocadas. E por não ter percebido, não as desconstruiu, até que ao final “aceitou” o filho sem jamais tê-lo conhecido de fato, pois o que aceitou foram os estereótipos através dos quais ele olhava para o filho. Tanto é assim, que o título presta homenagem a um dos maiores estereótipos – o de que as pessoas com síndrome de Down jamais serão autônomas.

Ao narrar essa trajetória, a principal mensagem que o filme nos passa é a de que tanto faz que todas aquelas pré-compreensões equivocadas sobre as pessoas com síndrome de Down sejam estereótipos, basta que você “aceite” seu filho. Mas, sem desconstruir tais pré-compreensões, não estamos aceitando nosso filho, o que estamos aceitando é a visão preconceituosa sobre ele. E pior, a estamos reproduzindo.

Para nós, mães e pais de pessoas com síndrome de Down que desconstruíram o preconceito, é muito fácil perceber esse mecanismo. Mas para o senso comum não. Inevitavelmente, “O Filho Eterno” deixará à sociedade a mensagem de que nossos filhos correspondem a todo aquele estereótipo que compõe o imaginário do protagonista e que encontra sua rendição na “aceitação”.

Felizmente, a realidade é outra. Pesquisa feita nos Estados Unidos com mais de 2 mil pessoas, revelou que 99% mães e pais declaram amar os filhos, 97% disseram sentir orgulho dos filhos e 79% disseram enxergar a vida de uma forma mais positiva por causa de seus filhos. No caso dos irmãos, os resultados também foram muito positivos. Quase todos os irmãos de pessoas com síndrome de Down consideram a relação com eles positiva e estimulante. 88% dos irmãos mais velhos disseram que o convívio com o irmão com síndrome de Down os transformaram em pessoas melhores e 94% disseram sentir orgulho dos irmãos com síndrome de Down. Mas o dado mais relevante é o encontrado na parte da pesquisa que entrevistou 284 pessoas com síndrome de Down maiores de 12 anos. 99% deles se disseram felizes e satisfeitos com a própria vida. 97% gostam de ser quem são e 96% gostam da maneira como se veem. A percepção acerca das relações familiares também é extremamente positiva. 99% expressam amor por suas famílias e 97% “adoram” os irmãos.

http://www.movimentodown.org.br/2013/10/pesquisa-mostra-que-99-das-pessoas-com-sindrome-de-down-se-consideram-felizes/

O problema é que pouca gente conhece esses números, e também não tem contato com pessoas com síndrome de Down. E essas pessoas – a maior parte da população – continuam achando que as famílias que dizem que seus entes queridos são membros importantes de suas vidas e da comunidade, além de serem felizes e motivo de alegria para os demais, são iludidas, ou até estão mentindo.

Infelizmente, é essa a ideia que o filme vem reforçar. O enredo toca tão de leve na figura do filho, que não deveria se chamar “O Filho Eterno” e sim “A Egotrip de um Pai”, pois ali, o filho com síndrome de Down é apenas o gatilho para a narrativa.

Não estou querendo dizer que as angústias de um ser humano não sejam válidas e nem legítimas. Mas então, que se assumisse que o enredo é sobre o pai, sem importar muito quem ou o quê está dialogando com ele.

Nada mais prejudicial à luta contra o preconceito e discriminação contra as pessoas com síndrome de Down do que a mensagem de que são pessoas dependentes que só precisam de aceitação. Anos de esforços pelo esclarecimento da sociedade e luta pelo reconhecimento da autonomia das pessoas com síndrome de Down sendo embaçados pela força comercial de um filme produzido por uma gigante da mídia, que, para explorar a comoção social, naturaliza, legitima e romantiza o preconceito e a discriminação na sua forma mais cruel, a de um pai para com o seu filho. Naturaliza, legitima e romantiza porque a apresenta travestida de conflito interno. Nenhuma forma de preconceito deve ser celebrada apenas por estar romantizada. “O Filho Eterno” deixará como legado, ao cidadão comum, uma nova onda de consolidação de pontos de vista e considerações esteriotipadas sobre a pessoa com síndrome de Down. E este mesmo cidadão comum quando lê o livro ou assiste o filme, pensa: se o pai que é pai pensa assim por que eu tenho que aceitar e incluir uma pessoa com deficiência em minha vida?”

E quando eu pensava que isso era o pior que o filme poderia causar, assisti ao vídeo em que a Tathi Piancastelli desabafa após ver o trailer oficial do filme. E estou envergonhada. Envergonhada por não ter passado pela minha cabeça a dor que causaria a uma pessoa com síndrome de Down assisti-lo. Envergonhada por não ter perguntado antes a uma pessoa com síndrome de Down como ela se sentia diante de tudo isso. Me perdoe Tathi. Ficou pra mim a lição sobre a necessidade de, em qualquer situação, sempre dar voz a quem tem de fato o protagonismo.

Reação de Tathi Piancastelli ao trailer do filme:

https://www.facebook.com/MovimentoDown/videos/1152373958192110/

Legenda do vídeo: “Oi, eu vi um filme, um trailer, de uma pessoa com deficiência com síndrome de Down. Eu não preciso de conserto, consertar. Eu sou assim. Tô aqui até agora. Até hoje”.

Por Gisele Gato, com colaboração de Tathi Piancastelli, Patricia Almeida e Ana Nahas.